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O golpe de 1964 em 3 momentos, 9 personagens e 25 arquivos

  • Publicado: Quinta, 04 de Abril de 2019, 16h59
  • Última atualização em Segunda, 08 de Abril de 2019, 14h18

Juliana Sayuri 30 Mar 2019 (atualizado 03/Abr 16h01)

Com a participação de setores militares, parlamentares e civis, a deposição do presidente João Goulart deu início a 21 anos de ditadura militar no Brasil. Saiba por que o 55º aniversário do golpe deve ser lembrado, mas não comemorado

 

Um tanque em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, no golpe de 1964

 

Pela primeira vez desde a redemocratização, um presidente da República incentivou publicamente a celebração do dia 31 de março nos quartéis do país. Por meio de seu porta-voz, Jair Bolsonaro anunciou às vésperas da data as “comemorações devidas” dos 55 anos do golpe de 1964, completados neste domingo (31).

Depois, diante da repercussão negativa, trocou o verbo “comemorar” por “rememorar”. Mas ressaltou que não considera ter havido uma ditadura no país durante o período de 21 anos em que generais comandaram o Palácio do Planalto.

Bolsonaro ganhou notoriedade defendendo os governos militares e exaltando torturadores do período. Sempre chamou o golpe de “revolução democrática”. Eleito presidente, o capitão reformado do Exército que foi deputado federal por quase 30 anos traz de volta à agenda nacional o debate sobre o significado do 31 de março de 1964, mesmo contrariando milhares de documentos (militares e diplomáticos, de instituições brasileiras e estrangeiras) e depoimentos oficiais (de agentes da repressão política, testemunhas e vítimas).

Abaixo, o Nexo relembra os momentos centrais dos cinco governos militares que, entre 1964 e 1985, promoveram perseguições políticas, assassinatos, sequestros, torturas e censura à imprensa e às artes. Além disso, destaca personagens simbólicos e lista arquivos relevantes para a compreensão desse período da história cujas marcas ainda sobressaem na política e cultura nacionais.

Os antecedentes do golpe

O Brasil passou por suas últimas eleições presidenciais antes da ditadura militar no ano de 1960. Jânio Quadros, do PTN (Partido Trabalhista Nacional) foi eleito presidente. João Goulart, do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), foi eleito vice.

Marcha da Família com Deus pela liberdade, em São Paulo, em março de 1964

 

Diferentemente de hoje, naquela época as chapas não eram conjuntas. O eleitor poderia votar em um presidente de um grupo político e em um vice de outro. Era exatamente o caso de Jânio, conservador, e Jango - apelido de João Goulart -, ligado ao trabalhismo de Getúlio Vargas.

Jango assumiu o Palácio do Planalto após uma crise política que culminou na renúncia de Jânio, em 1961. Na época, o Congresso aprovou uma emenda constitucional que instalou o parlamentarismo, limitando os poderes presidenciais. Em 1963, um plebiscito determinou o retorno ao presidencialismo.

Era década de 1960, e a Guerra Fria ditava o debate político no mundo, tendo os Estados Unidos como líder do bloco capitalista e a União Soviética como líder do bloco comunista. A ilha caribenha de Cuba havia feito sua revolução em 1959.

Em 1962, o Brasil passou a viver uma crise econômica, com aumento da inflação e do déficit público. No ano seguinte, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foi de 1,5%.

Jango entrou no ano de 1964 com aprovação popular. Segundo pesquisas feitas pelo Ibope, mantidas sob sigilo até 2003, 15% dos entrevistados consideravam o governo “ótimo” e 30%, “bom”. Para 24%, era um governo “regular”. E para 16%, era “péssimo”.

O então presidente também era favorito para as eleições que seriam realizadas em 1965, com 49% das intenções de voto, segundo o mesmo Ibope. Os levantamentos estão no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade de Campinas.

Uma das principais propostas de Jango eram as reformas de base (eram 16, entre elas as reformas agrária, urbana, universitária, tributária e eleitoral), que não tinham apoio da maioria dos parlamentares no Congresso.

Em 13 de março de 1964, o então presidente defendeu as reformas em um comício na Central do Brasil, no Rio, diante de 200 mil pessoas. Setores conservadores consideravam as propostas “comunizantes”.

Em 19 de março de 1964, em resposta ao comício na Central do Brasil, setores conservadores e entidades cívicas e religiosas convocaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo. O protesto reuniu cerca de 500 mil pessoas, mobilizadas contra a “ameaça comunista” no Brasil.

Na interpretação de diversos historiadores, a defesa das reformas de base foi o estopim para o golpe militar, articulado com apoio de parlamentares, setores civis (latifundiários e empresários paulistas), imprensa e Igreja Católica.

Devido à articulação, autores como René Armand Dreifuss, no livro “1964: a conquista do Estado” (ed. Vozes, 1981), se referem ao golpe como “civil-militar”.

Em artigo acadêmico de 2016, a historiadora Mariana Joffily resgatou as principais linhas historiográficas sobre o golpe e a ditadura. Segundo Joffily, estudos recentes indicam mais nuances, disputas e contradições entre militares e os diversos grupos de apoio à ditadura.

O glossário

O GOLPE
É a ruptura da ordem institucional constituída de determinada nação. João Goulart, presidente em 1964, foi afastado do poder à força por uma aliança civil-militar que rompeu a ordem institucional constituída da época.

A AMEAÇA
O uso de uma alegada ameaça comunista ajudou a justificar o golpe de 1964. Goulart era acusado de conspirar para instalar o comunismo no Brasil, algo que é considerado um exagero segundo a análise da maioria dos historiadores a partir de documentos do período: o presidente era trabalhista e a luta armada, apontada como risco iminente sob seu governo, só conquistou adeptos após o golpe, como resistência ao regime ditatorial.

A DITADURA
É um governo autoritário, caracterizado pela tomada do poder político, com apoio das Forças Armadas. Em uma ditadura, os órgãos legislativos e judiciários são subordinados ao Poder Executivo, as eleições são suspensas, os direitos de liberdade individual e livre expressão são controlados. Não há regras transparentes sobre o processo de sucessão governamental. Após o golpe de 1964, os governos seguintes foram marcados por essas diretrizes.

1 O momento do golpe militar
Na madrugada de 31 de março de 1964, as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, onde estava o presidente João Goulart (1919-1976), conhecido como Jango. Na mesma data, iniciou-se a Operação Brother Sam, um movimento da Marinha dos Estados Unidos para apoiar um golpe de Estado no Brasil.

No dia 1º de abril de 1964, os militares tomaram o Forte de Copacabana, no Rio, para destituir o presidente. Jango viajou a Brasília e, na sequência, a Porto Alegre, onde o então deputado federal Leonel Brizola tentava organizar um movimento de resistência à deposição do presidente.

No dia 2 de abril de 1964, Auro de Moura Andrade (1915-1982), presidente do Senado, declarou “vaga” a Presidência. Ranieri Mazzilli (1910-1975), presidente da Câmara dos Deputados, foi empossado interinamente, mas o poder ficou nas mãos do Comando Supremo da Revolução, formado por ministros militares.

No dia 9 de abril de 1964, os ministros militares promulgaram o Ato Institucional n.º 1, que determinou que o governo militar poderia cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos ou afastar do serviço público quem pudesse ameaçar a segurança nacional. O ato determinou a eleição para presidente e vice-presidente da República pelo voto indireto, via Congresso.

Um dos articuladores do golpe, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco (1900-1967) foi o primeiro presidente do período ditatorial, escolhido por um Congresso já desfigurado pelas primeiras cassações. Jango partiu para o exílio no Uruguai.

O primeiro ato
- 102 pessoas foram citadas na primeira lista do AI-1: entre elas, 41 deputados federais tiveram seus mandatos cassados e 29 líderes sindicais perderam direitos políticos. Personalidades como Jango, Darcy Ribeiro, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola e Miguel Arraes também perderam direitos políticos

- 3.500 pessoas foram listadas ao todo no AI-1, entre elas 1.200 militares.

O Ato Institucional n.º 2, de outubro de 1965, estabeleceu a eleição indireta para presidente e a dissolução de todos os partidos políticos então existentes, entre outros pontos. A partir do AI-2 o sistema pluripartidário foi eliminado, sendo substituído pelo bipartidarismo no país.

O Ato Institucional n.º 3, de fevereiro de 1966, estendeu as eleições indiretas para governadores.

Já o Ato Institucional n.º 4, de dezembro de 1966, convocou o Congresso para discutir e votar uma nova Constituição, que deveria incorporar elementos dos atos e decretos promulgados desde o golpe. Essa nova Carta foi promulgada em janeiro de 1967, desconsiderando a maior parte das emendas propostas pelo Congresso. O AI-4 também regulamentou o bipartidarismo e a cena política ficou dividida em dois partidos: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), na situação, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), na oposição.

Três personagens

ALFEU DE ALCÂNTARA MONTEIRO, A PRIMEIRA VÍTIMA
Morto a tiros no quartel-general da 5ª Zona Aérea, na cidade gaúcha de Canoas, o tenente-coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro (1922-1964) é considerado a primeira pessoa assassinada pela ditadura militar.

Na noite de 4 de abril de 1964, o brigadeiro Nélson Freire Lavanere-Wanderley chegou ao quartel na condição de novo comandante, dando voz de prisão a vários militares. Monteiro foi chamado ao gabinete de Wanderley e, minutos depois, foi assassinado. O episódio é citado no livro “Castello” (ed. Contexto, 2004), do jornalista Lira Neto.

Em decisão divulgada em 12 de março de 2019, a Justiça Federal reconheceu a morte de Monteiro como crime político-ideológico decorrente do regime militar.

FRANCISCO JULIÃO, O LÍDER PRESO
Fundador das Ligas Camponesas, movimento de defesa da reforma agrária na década de 1950, o parlamentar pernambucano Francisco Julião (1915-1999), do PSB (Partido Socialista Brasileiro), foi acusado de disseminar “ideais comunistas” e ser “agitador político” no Nordeste.

Sob o slogan “reforma agrária na lei ou na marra”, as Ligas Camponesas defendiam a redistribuição de terras no Brasil. Na década de 1960, organizaram comitês regionais em outros estados e conquistaram destaque internacional, recebendo inclusive visitas do senador americano Robert Kennedy e do filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Segundo a socióloga Aspásia Camargo, a imprensa internacional transformou Julião e as ligas em “símbolo” do Terceiro Mundo emergente. Após o AI-1, Julião foi preso. Em dezembro de 1965, liberado graças a um habeas corpus, partiu para o exílio no México, onde viveu até a Anistia, em agosto de 1979.

JUSCELINO KUBITSCHEK, O EX-PRESIDENTE INVESTIGADO
Embora tenha apoiado Castelo Branco, na expectativa de disputar as eleições seguintes, previstas para outubro de 1965, o ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek (1902-1976) teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos em 8 de junho de 1964.

Kubitschek se tornou alvo de Inquéritos Policiais Militares e foi convocado para prestar depoimento diversas vezes. Segundo o historiador Diego Knack, o caso tinha insinuações de envolvimento de JK com corruptos e comunistas. Durante seu governo, entre 1956 e 1961, também era culpabilizado pela inflação e pela recessão econômica do país, de acordo com o discurso dos militares.

Após a cassação, JK se exilou na Europa (França e Portugal) e, depois de voltar ao Brasil, morreu em um acidente de carro em 22 de agosto de 1976. A trajetória do ex-presidente está no livro “JK e a ditadura” (ed. Objetiva, 2012), do jornalista Carlos Heitor Cony.

2  O momento do golpe dentro do golpe
Após Castelo Branco, o também general Artur da Costa e Silva assumiu a Presidência e governou entre 1967 e 1969. Ele era um dos principais expoentes da chamada “linha dura” dos militares e editou o Ato Institucional n.º 5, publicado em 13 de dezembro de 1968.

 

Manifestação no Rio, em 1968


O ato é considerado um “golpe dentro do golpe”, por conceder poderes absolutos à cúpula militar - o chamado “poder de exceção” para punir arbitrariamente os que fossem considerados inimigos do regime.

Antes do AI-5 e antes do crescimento da luta armada, segundo levantamentos da Comissão Nacional da Verdade, já existiam casos de tortura. De acordo com a historiadora Heloisa Starling, integrante da comissão, a tortura não era uma prática “pontual”, mas a “base” da repressão da ditadura.

Após o AI-5, iniciou-se um período de repressão política ainda mais violento, marcado pela perseguição de adversários políticos e críticos, censura às universidades, à imprensa e às artes, e milhares de prisões, casos de tortura e assassinatos. O Congresso Nacional foi fechado.

Teses revisionistas argumentam a existência de “dois lados” na ditadura: de um, os militares que estariam defendendo a “ordem”; de outro, a luta armada, inspirada pelo marxismo e defensora de uma revolução comunista.

Entretanto, segundo a análise de acadêmicos ancorada em documentos, não há dois lados equiparáveis, devido a diferenças sensíveis entre os pequenos grupos guerrilheiros e o aparato repressivo do Estado (que vitimou não apenas guerrilheiros, mas também civis não envolvidos em quaisquer atividades políticas, incluindo crianças e mulheres).

Um dos maiores movimentos armados foi a Guerrilha do Araguaia (1972-1975), na floresta amazônica, organizado por militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), à época clandestino. Em 2009, o major Curió, um dos oficiais mais destacados da ditadura, abriu seus arquivos ao jornal O Estado de S. Paulo, revelando que o Exército executou guerrilheiros que já estavam rendidos e amarrados.

Por muito tempo, justificou-se o AI-5 como reação às ações armadas da esquerda. Entretanto, segundo arquivos do Superior Tribunal Militar, revelados em 2018, o AI-5 fez parte de um plano militar para alongar a ditadura, com atentados a bomba por um grupo paramilitar e de extrema direita.

Emilio Garrastazu Médici assumiu a Presidência e governou entre 1969 e 1974. Sob Médici, teve início a Oban (Operação Bandeirante), um centro de combate a organizações de oposição política ao regime militar patrocinado por empresários. Inicialmente a Oban era clandestina.

De acordo com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, uma circular intitulada “Instruções sobre segurança interna” institucionalizou a operação com os Codis (Centro de Operações para a Defesa Interna).

Com a proposta de “coordenar as atividades dos diversos órgãos encarregados da repressão à subversão e ao terrorismo”, a operação era composta por militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, policiais federais, agentes do SNI (Sistema Nacional de Informações) e policiais do Dops (Delegacia de Ordem Política e Social).

O aparato era integrado pelo sistema DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna). A Oban teve influência de estratégias de guerra francesas, utilizadas em conflitos na Indochina e Argélia. Militares brasileiros fizeram cursos para métodos violentos e ilegais de repressão (como a tortura) com oficiais americanos na Escola das Américas.

Três personagens

EDSON LUIS, A HORA ERRADA
Na noite de 28 de março de 1968, Edson Luis de Lima Souto (1950-1968), de 17 anos, foi assassinado por policiais militares que, durante uma manifestação, invadiram o restaurante estudantil do Calabouço, no centro do Rio de Janeiro. Secundarista, Edson era uma dos 300 estudantes jantando no endereço e foi atingido por um tiro no peito, à queima-roupa. Outros seis ficaram feridos.

O episódio foi testemunhado pelos jornalistas Zuenir Ventura, Ziraldo e Washington Novaes, que assistiram à repressão da janela do edifício da revista Visão. O cineasta Eduardo Escorel documentou o funeral. Apontado como autor do disparo, o aspirante Aloísio Raposo Filho não foi penalizado e chegou ao cargo de coronel da PM.

Estudantes conseguiram resgatar o corpo de Edson e o carregaram em passeata pelo centro do Rio até a Cinelândia, onde foi velado. Do velório até a missa na Igreja da Candelária, na manhã de 4 de abril de 1968, foram feitos diversos protestos. Meses depois, a mobilização culminou na Marcha dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968.

HENNING BOILESEN, UM PATRONO DOS PORÕES
Nascido na Dinamarca e radicado no Brasil, o empresário Albert Henning Boilesen (1916-1971), presidente da Ultragaz, foi um dos principais entusiastas da Oban, em 1969. A operação paulista foi financiada por empresários vinculados à Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), entre eles, Boilesen.

Além do aporte financeiro, o empresário importou dos Estados Unidos um instrumento de tortura de descargas elétricas. O empresário também assistiu e participou de sessões de tortura, segundo o historiador Jacob Gorender relata no documentário “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski, de 2009. O caso é considerado emblemático da participação civil na repressão.

Boilesen foi assassinado a tiros por militantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes) e da ALN (Ação Libertadora Nacional), em 1971.

A ALN foi fundada por Carlos Marighella (1911-1969), dissidente do Partido Comunista Brasileiro. Boilesen e Marighella morreram em diferentes emboscadas na mesma rua, a alameda Casa Branca, na capital paulista.

O militante Joaquim Alencar de Seixas (1922-1971), do MRT, foi detido, acusado de participar do assassinato de Boilesen. Seu filho Ivan Seixas, adolescente à época, também foi preso. Ambos foram torturados no DOI-Codi. Levado por oficiais, Ivan viu a notícia da morte de seu pai “em confronto” na primeira página do jornal “Folha da Tarde” - Joaquim ainda estava vivo e só foi executado no dia seguinte. O episódio é relatado no livro “Cães de guarda” (ed. Boitempo, 2004), da historiadora Beatriz Kushnir.

VLADIMIR HERZOG, UMA VÍTIMA DO DOI-CODI
Diretor de Jornalismo da TV Cultura, o jornalista Vladimir Herzog militava no Partido Comunista Brasileiro, que estava na ilegalidade desde o golpe de 1964.

Procurado na sede da TV Cultura na noite de 23 de outubro de 1975, o jornalista se recusou a acompanhar os agentes militares e prometeu que iria prestar depoimento no dia seguinte.

Herzog se apresentou para depor voluntariamente no DOI-Codi de São Paulo na manhã de 24 de outubro de 1975. Foi preso e levado para interrogatório sob tortura: choques elétricos, espancamentos e sufocamentos. Ele foi morto sob tortura nas instalações do destacamento.

Os militares divulgaram uma nota oficial que dizia que o jornalista tinha cometido suicídio, enforcando-se com um cinto de macacão de presidiário. A fotografia feita para simular essa versão tornou-se um símbolo da repressão do período. O caso impulsionou protestos pela volta à democracia.

Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela prisão, tortura e morte de Herzog. Os responsáveis nunca foram julgados.

3  O momento da abertura
Ao assumir em 1974, o também general Ernesto Geisel anunciou o famoso processo de abertura política “lenta, gradual e segura”. Geisel governou entre 1974 e 1979. Demitiu oficiais linha-dura (como o ministro Sylvio Frota e o comandante Ednardo D’Ávila Melo), extinguiu o AI-5, em 1978, e abriu caminho para a promulgação da Lei da Anistia, em 1979.

Campanha Diretas Já, entre 1983-1984

 

Alguns autores atribuem a Geisel o papel de “patrono” da distensão. Entretanto, um memorando da agência americana CIA liberado em maio de 2018, mostrou que Geisel autorizou a continuidade da política de “execuções sumárias” iniciada por seu antecessor, Médici. O documento foi divulgado pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas.

Na análise do historiador Rodrigo Patto Sá Motta ao jornal Folha de S.Paulo, o documento é importante por reforçar a confirmação de que o alto escalão militar tinha conhecimento e chancelava as arbitrariedades da repressão.

Para o historiador Marcos Napolitano, em entrevista ao Nexo à época em que o memorando veio a público, a ideia de Geisel como “herói democratizador” da ditadura já vem sendo revista. Segundo Napolitano, entre 1974 e 1976 a repressão era forte, com a intensificação de instrumentos ilegais como torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimento de corpos. Foi sob o governo Geisel, aliás, que ocorreu a morte de Herzog no DOI-Codi.

A repressão continuou no governo do também general João Baptista Figueiredo, sucessor de Geisel, com bombas lançadas a bancas de revistas e redações. Figueiredo governou entre 1979 e 1985.

As vítimas da ditadura
- 20 mil torturados

- 8.300 indígenas mortos (por “ação ou omissão” do Estado, segundo estimativa da Comissão Nacional da Verdade)

- 7.000 exilados

- 4.000 direitos políticos cassados

- 434 mortos e desaparecidos

- 19 crianças sequestradas

Em 28 de agosto de 1979, Figueiredo assinou a Lei da Anistia, que perdoou todos que, entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou tiveram seus direitos políticos suspensos.

A lei beneficiou perseguidos políticos, exilados, ex-guerrilheiros - e militares, que não foram julgados pelas arbitrariedades cometidas durante a ditadura, o que despertou diversas críticas.

Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal se manifestou contra a revisão da Lei da Anistia. Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade recomendou a revogação parcial da lei, para possibilitar a responsabilização e a punição de torturadores.

Em maio de 2018, após a divulgação do memorando da CIA, integrantes da Comissão Nacional da Verdade voltaram a defender a revisão da Lei da Anistia. “A extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia”, publicaram em artigo no jornal Folha de S.Paulo, citando a página 965 do documento final da comissão.

Três personagens

A BUSCA DE ZUZU ANGEL
O militante Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971), do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), foi preso no Rio de Janeiro, na manhã 14 de maio de 1971.

Diante do desaparecimento de seu filho, a estilista Zuleika Angel Jones (1921-1976) iniciou uma campanha de mobilização para encontrá-lo, denunciando as arbitrariedades da ditadura à imprensa internacional. Em 13 de setembro de 1971, promoveu um desfile-protesto no Consulado-Geral do Brasil em Nova York, nos Estados Unidos.

Em 1972, Zuzu recebeu uma carta do preso político Alex Polari de Alverga, que esteve preso na Base Aérea do Galeão junto a Stuart. Segundo Alex, Stuart foi brutalmente torturado e morreu na noite de 14 de maio de 1971.

Em 1975, Zuzu escreveu cartas ao presidente Geisel, que anunciara a “abertura”, reivindicando o direito de sepultar Stuart.

Em 1976, Zuzu morreu em um acidente de carro na saída de um túnel em São Conrado, no Rio de Janeiro. Em 1998, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos julgou o caso e responsabilizou o regime militar pela morte da estilista. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2014, o ex-delegado Cláudio Guerra relacionou o coronel Freddie Perdigão ao acidente.

OS RELATOS DE CLÁUDIO GUERRA
Na noite de 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu no estacionamento do Riocentro, no Rio de Janeiro.

Dois agentes do DOI-Codi do 1° Exército, Guilherme Pereira do Rosário e Wilson Dias Machado pretendiam detonar o artefato no auditório do pavilhão, onde 20 mil pessoas assistiam ao show comemorativo do Dia do Trabalho, em 1° de Maio. O objetivo era provocar pânico na plateia e responsabilizar um grupo de esquerda pelo atentado - tratava-se da “Missão 115 - Operação Centro”, código inventado pelo DOI-Codi.

O atentado frustrado provocou a morte de Rosário, deixou ferido Machado e abriu a mais grave crise política do general Figueiredo. O governo acobertou os agentes com um inquérito fraudado. A CIA também fez relatório indicando a autoria dos atentados aos agentes.

Em junho de 1999, o caso foi reaberto: o sargento Rosário, o coronel Machado, o ex-chefe do SNI Newton Cruz e o ex-chefe do SNI no Rio Freedie Perdigão foram apontados como autores do crime. Eles foram beneficiados pela Lei da Anistia.

Em dezembro de 2013, o caso foi mais uma vez reaberto, após o depoimento do ex-delegado do Dops Cláudio Guerra. O Ministério Público Federal denunciou seis pessoas por envolvimento no atentado.

Guerra atuou como “executor de operações”, depois “estrategista” de atentados. Segundo seu próprio depoimento ao documentário “Missão 115” (2018), de Silvio Da-Rin, Guerra também ocultou e incinerou cadáveres.

Autor dos relatos biográficos de “Memórias de uma guerra suja” (ed. Topbooks, 2012) e atualmente pastor evangélico, Guerra também relatou crimes (seus e de outros agentes) ao documentário “Pastor Cláudio” (2019), de Beth Formaggini.

A CARTA DE ULYSSES GUIMARÃES
Ativo na política desde 1945 e filiado ao Movimento Democrático Brasileiro desde 1968, o advogado Ulysses Silveira Guimarães (1916-1992) teve atuação emblemática na oposição à ditadura militar.

Em 1973, em protesto contra a eleição forjada pela ditadura prevista para janeiro de 1974, o parlamentar se lançou “anticandidato” à Presidência, tornando-se um símbolo de resistência ao regime militar.

A intensa participação na campanha das Diretas Já, movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas em 1983-1984, lhe rendeu o apelido de “Senhor Diretas”.

Nas eleições de janeiro de 1985, ainda indiretas, disputadas no Colégio Eleitoral, Ulysses apoiou Tancredo Neves, do Movimento Democrático Brasileiro. Vitoroso, Neves foi internado às vésperas da posse, em 14 de março, e morreu antes de assumir efetivamente, em 21 de abril. O vice-presidente José Sarney assumiu.

Ulysses presidiu a Assembleia Nacional Constituinte que, ao longo de 19 meses, redigiu a nova Carta Magna, rompendo com as regras anteriormente ditadas pelo regime militar. Em 5 de outubro de 1988, a nova Constituição foi promulgada, e vigora até hoje.

Em 12 de outubro de 1992, Ulysses desapareceu em um acidente de helicóptero no litoral do Rio. O corpo nunca foi encontrado.

As disputas pela memória

Questionado pelo jornal Valor Econômico sobre a “Ordem do Dia”, em 28 de março de 2019, Bolsonaro respondeu que o texto “traz história”: “Tem datas ali”.

Elencar datas não é sinônimo de história, segundo historiadores profissionais. O conhecimento histórico é produzido a partir de um método científico, com análise crítica de documentos e cruzamento de fontes. O desconhecimento sobre o regime militar, na crítica de diversos acadêmicos, é animado por leituras distorcidas e mitos do período.

Até a década de 1980, prevaleceu a versão “oficial” dos militares sobre os acontecimentos da época. A partir de pesquisas de historiadores, jornalistas, sociólogos e ativistas de direitos humanos, entre outros, novas informações vieram à tona.

Em 2011, a instituição da Lei de Acesso à Informação e da Comissão Nacional da Verdade permitiu o desenvolvimento de mais pesquisas. As iniciativas foram firmadas no governo de Dilma Rousseff, ex-guerrilheira presa e torturada em 1970.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade publicou seu relatório final. Ao longo dos trabalhos, entre maio de 2012 e dezembro de 2014, a comissão realizou 80 audiências públicas, fez mais de 100 diligências investigativas e ouviu 1121 depoimentos, entre eles, 132 de agentes públicos. A comissão considerou como “graves violações de direitos humanos” as ações cometidas por agentes do Estado, a seu serviço ou com a conivência estatal, contra cidadãos brasileiros ou estrangeiros.

Ao final, a comissão fez 29 recomendações, entre elas o “reconhecimento pelas Forças Armadas de sua responsabilidade institucional” pelos casos de violações de direitos humanos e a “proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964”.

Aos 55 anos do golpe, proliferam disputas sobre a memória da ditadura. Em artigo acadêmico de 2018, a historiadora Caroline Silveira Bauer, por exemplo, afirma que o passado ditatorial vem sendo revirado atualmente por uma retórica distorcida por fins políticos, como tentativas de justificar ou legitimar o regime.

À diferença dos que falam em “comemorar” o 31 de março de 1964, o mote de instituições de defesa de direitos humanos e diversos núcleos intelectuais é outro: lembrar “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.

Os arquivos para não esquecer

Além dos materiais linkados ao longo deste texto, o Nexo indica lançamentos, livros de referência, indicações culturais, filmes e acervos digitais como fontes de informação para compreender o período:

5 lançamentos de 2018/2019

- “Cativeiro sem fim”, de Eduardo Reina (ed. Alameda)

- “Liberdade vigiada: as relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês: do golpe à anistia”, de Paulo César Gomes (ed. Record)

- “O abismo na história: ensaios sobre o Brasil em tempos de Comissão da Verdade”, de Edson Teles (ed. Alameda)

- “Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel”, de James Green (ed. Civilização Brasileira)

- “Tanques e togas”, de Felipe Recondo (ed. Companhia das Letras)

5 livros de referência sobre a história

- “A ditadura que mudou o Brasil”, de Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta (ed. Zahar)

- “Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”, de Carlos Fico (ed. Record)

- “Brasil: uma biografia”, de Heloisa Starling e Lilia Schwarcz (ed. Companhia das Letras)

- “Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)”, de Rodrigo Patto Sá Motta (ed. Perspectiva)

- “Lugar nenhum”, de Lucas Figueiredo (col. Arquivos da Repressão no Brasil, ed. Companhia das Letras)

5 livros sobre a cultura da época

- “Apesar de vocês”, de James Green (ed. Companhia das Letras)

- “Caminhando e cantando: o imaginário do movimento estudantil brasileiro de 1968”, de Rafael Rosa Hagemeyer (Edusp)

- “Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV”, de Marcelo Ridenti (ed. Unesp)

- “Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa”, de Bernardo Kucinski (Edusp)

- “Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar”, de Sandra Reimão (Edusp)

5 filmes

- “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski (2009)

- “O dia que durou 21 anos”, de Camilo Tavares (2013)

- “O ano em que meus pais saíram de férias”, de Cao Hamburger (2006)

- “O que é isso, companheiro?”, de Bruno Barreto (1997)

- “Pastor Cláudio”, de Beth Formaggini (2019)

5 acervos digitais

- Acervo da Comissão Nacional da Verdade, mantido pelo Arquivo Nacional

- Acervo  Deops, do Arquivo Público do Estado de São Paulo

- Arquivos da Ditadura, organizado por Elio Gaspari

- Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional

- Opening the Archives, organizado por James Green e Sidnei Munhoz

 

Fonte: Nexo, 30/03/2019
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/30/O-golpe-de-1964-em-3-momentos-9-personagens-e-25-arquivos?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo  

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