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Como agia a rede solidária que enfrentou as ditaduras sul-americanas

  • Publicado: Terça, 10 de Julho de 2018, 12h29
  • Última atualização em Terça, 10 de Julho de 2018, 12h31

João Paulo Charleaux    07 Jul 2018    (atualizado 07/Jul 12h46)

Jan Rocha fala ao ‘Nexo’ sobre o Clamor, grupo de voluntários que, por 13 anos, protegeu famílias perseguidas pelos regimes militares da região

Foto: Pablo Sanchez/Reuters - 29.08.2008

Ditadura Argentina

Parentes de desaparecidos choram em audiência na Argentina

 

O ano de 2018 marca os 40 anos de fundação do Clamor (Comitê para a Defesa dos Direitos Humanos no Cone Sul), uma rede transnacional de voluntários que, apoiados por setores da Igreja Católica, ofereceu proteção e solidariedade a milhares de cidadãos perseguidos pelas ditaduras que dominaram a região a partir dos anos 1960.

A organização, fundada em 1968, atuou por 13 anos como um contraponto positivo da sociedade civil à estratégia unificada de perseguição transnacional a opositores dos regimes militares instaurados nesse período na Argentina, no Uruguai, no Chile, no Paraguai, no Brasil e na Bolívia.

Quando ditaduras como a brasileira (1964-1985) atingiam seu período de maior brutalidade, pessoas de diversas nacionalidades se coordenaram de maneira espontânea, com ajudante determinante do então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, para ajudar perseguidos políticos e familiares de desaparecidos, incluindo crianças separadas arbitrariamente de seus pais.

A jornalista britânica Jan Rocha foi uma das figuras mais atuantes nesse momento. Como correspondente da rede BBC, ela não apenas reportou o que se passava na região, como também se engajou na formação do Clamor.

Essa experiência é contada por ela no livro “Solidariedade Não Tem Fronteiras”, publicado em julho de 2018, pela editora Outras Expressões.

Jan Rocha concedeu a entrevista abaixo ao Nexo, por e-mail, no dia 5 de julho de 2018, na qual explicou o contexto em que se deu a fundação do grupo e analisou também a importância do relato dessa experiência nos dias atuais.

Como nasceu a ideia de formar um grupo transnacional para defender pessoas perseguidas pelas ditaduras da época?

Jan Rocha Foi o contato com os refugiados que chegaram da Argentina em 1977, fugindo da repressão desencadeada pelos militares que tomaram o poder em 1976.

As Forças Armadas, por meio de um golpe de Estado deflagrado no dia 24 de março daquele ano, derrubaram a presidente argentina Isabel Perón. Foi um golpe muito esperado e até aplaudido por muitos, porque o governo de Isabel, que era viúva de [Juan Domingo] Perón [presidente por dois períodos separados, de 1946 a 1955 de 1973 a 1974] era impopular e corrupto, e a violência política campeava.

De um lado, estava a Triple A (Aliança Anticomunista Argentina, em português), formada por paramilitares que mataram sindicalistas e esquerdistas. Do outro lado, estavam os grupos armados da esquerda, como o ERP (Exército Revolucionário do Povo, em português) e os Montoneros, que sequestravam empresários e atacavam militares.

Esperava-se que os militares restaurariam a ordem e depois entregariam o poder novamente aos civis. Porém, a agenda dos militares, com o beneplácito dos EUA, era muito mais radical: eliminar não só os grupos armados, mas qualquer tipo de organização democrática, solidária, pró-povo. Sindicatos, igreja progressista, líderes de associações de bairro [sofreram perseguição]. O objetivo era preparar o terreno para uma nova ordem econômica neoliberal, alinhada com os interesses dos EUA. Mas eliminaram uma geração de idealistas, de gente que queria um país melhor.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil - 25.10.2016

Dom Paulo
 
Dom Paulo Evaristo Arns, um dos líderes do Clamor, na PUC-SP

 

Ao mesmo tempo, os militares queriam evitar o repúdio que [o general Augusto] Pinochet provocou no Chile, quando derrubou o presidente [Salvador] Allende, em 1973, com muita violência e com muitas mortes.

Então, inventaram os ‘desaparecidos’. As pessoas eram pegas nas suas casas no meio da noite e simplesmente desapareciam. Ninguém sabia onde estavam, se estavam vivas ou mortas. As famílias entravam com milhares de ações de habeas corpus, que eram sempre negados porque a polícia e as Forças Armadas negavam que essas pessoas estivessem presas.

Todos os refugiados que chegaram aqui no Brasil tinham alguém desaparecido – um marido, uma mulher, um filho. Ouvindo as suas histórias, percebendo que existia uma enorme ignorância sobre o que estava realmente acontecendo na Argentina, surgiu a ideia de criar alguma organização para denunciar essa situação.

De onde vinha a motivação para que um grupo de pessoas comuns, voluntárias, agisse por conta própria, desafiando ditaduras que estavam executando opositores das formas mais brutais possíveis? Que tipo de pressões vocês sofriam?

Jan Rocha Eu acho que foi o impacto das terríveis coisas que os refugiados nos contaram. Ficamos sabendo da existência de verdadeiros campos de concentração para os quais os desaparecidos eram levados, e onde eram submetidos a condições subumanas, torturados e mortos. Sem julgamento, sem processo legal, sem nada.

Separadamente, algumas pessoas, dentre as quais eu me incluo, acharam que era preciso fazer algo. Não era possível saber dessas coisas e lavar as mãos, não fazer nada. Mas também percebemos que era preciso ter a proteção, o ‘guarda-chuva’ de uma instituição, no caso, da Igreja Católica, que na Cúria [que é ligada ao bispo de uma determinada diocese], já recebia refugiados. A sorte foi que naquela época, o arcebispo de São Paulo era Dom Paulo Evaristo Arns, um defensor dos direitos humanos muito corajoso, que acolheu a nossa ideia com entusiasmo, e, a partir daí, participou das nossas decisões.

As pressões eram indiretas. Estávamos em 1978, tempo do general [Ernesto] Geisel, e de sua abertura lenta e gradual. Ainda assim, havia muito medo e intimidação. Tínhamos conosco outros membros fundadores, como Luiz Eduardo Greenhalgh, que era advogado de presos políticos, e o pastor [presbiteriano] Jaime Wright, que era irmão de um desaparecido político, Paulo Wright. Eu mesma sofri uma pressão diferente, como correspondente da BBC. Eu, como jornalista, não deveria me envolver em questões políticas.

Soubemos depois, através de documentos no Arquivo Nacional, que os agentes do SNI [Serviço Nacional de Inteligência] e do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] acompanharam nossas atividades, mas nunca houve uma interferência direta.

O governo brasileiro afinal aceitava a presença do Acnur, a agência das Nações Unidas para Refugiados, mas a contragosto, pois não permitia que os refugiados latino-americanos permanecessem no Brasil. Assim que a pessoa obtinha status oficial de refugiado [o que implicava o reconhecimento de que essa pessoa era vítima de perseguição política], ela tinha que partir para asilo em outro país, geralmente na Europa.

Então, de certa forma, existia um clima hostil aos argentinos e uruguaios, que formavam a maioria dos exilados. Ainda assim, do ponto de vista deles, que fugiam de situações tão terríveis, o Brasil oferecia um alívio. Muitos optaram por ficar aqui, mesmo clandestinos, em vez de ir para o exílio no outro lado do mundo.

Por que a sra. considera importante que essa história esteja sendo lançada em livro hoje?

Jan Rocha Por várias razões. Primeiro, porque é uma história de solidariedade, uma história sobre um momento em que muitas pessoas e entidades, não somente o Clamor, uniram-se para ajudar quem precisava, aqui em São Paulo e em outras cidades também.

Segundo, porque o Clamor, nos anos em que todos os países do Cone Sul eram governados por ditaduras militares – não só a Argentina, mas também o Uruguai, o Paraguai, o Chile e a Bolívia, e, afinal, o Brasil também – teve um papel importante, pois ofereceu um apoio prático às organizações de direitos humanos, aos familiares etc. Para as pessoas desses países, era extremamente importante poder vir a São Paulo, e saber que as suas denúncias seriam publicadas e repercutidas. Porém, como o Clamor não existe mais, esse papel tende a ser esquecido.

Terceiro, porque hoje no Brasil se começou a falar em ‘intervenção militar’, e acho que seria salutar lembrar o que realmente acontece num regime militar, que pode começar, como ocorreu na Argentina, sendo visto como a solução para restabelecer a lei e a ordem, mas, com o poder absoluto nas mãos, acaba trilhando o caminho de intolerância, de ódio ao ‘outro’, ao diferente; e, eventualmente, destruindo o país.

De todos os países da região, o Brasil talvez seja o que mais reluta em punir os crimes da ditadura. Qual a consequência dessa opção?

Jan Rocha A consequência da impunidade é o estímulo para que esses crimes se repitam. A Lei de Anistia brasileira virou uma mancha na reputação do país. Basta ver a recente decisão da Corte Interamericana no caso de Vladimir Herzog.

Como é que o Brasil pode condenar outros países por violações de direitos humanos quando não julga seus próprios crimes? Também há consequências internas nas práticas da polícia, com casos de tortura, de muitas mortes mal explicadas nas favelas e periferias. O exemplo vem de cima; e [o que acontece] quando o exemplo é de impunidade?

Fonte: NEXO, 07/07/2018
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/07/07/Como-agia-a-rede-solidária-que-enfrentou-as-ditaduras-sul-americanas

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