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‘Tratar como teoria da conspiração é ingenuidade’, diz diretor de filme sobre interferência dos EUA no Nordeste

  • Publicado: Terça, 24 de Abril de 2018, 15h19
  • Última atualização em Terça, 24 de Abril de 2018, 15h44

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O diretor Fernando Weller participou de debate no CineBancários, onde o filme está em cartaz em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21


Fernanda Canofre

Fernando Weller tropeçou na história do filme Em Nome Da América sem querer. Há seis anos, o diretor partiu para o interior de Pernambuco atrás de encontrar quem falasse sobre o boato de que Steven Spielberg teria vivido na região, nos anos 1960, para fugir da Guerra do Vietnã. Acabou descobrindo que, mesmo que a passagem do cineasta fosse uma lenda, a presença de jovens norte-americanos na região, no período em que o Brasil entrava em um regime militar com apoio dos Estados Unidos, foi bem real.

Embalado na paranóia anti-comunista da Guerra Fria, foi nesta época que o governo de John Kennedy criou o programa Corpos de Paz. Uma tentativa de polir a imagem dos EUA no exterior. Através dele, jovens, brancos, universitários, de classe média, eram enviados para trabalhos comunitários em vários países subdesenvolvidos, como alternativa à frente de batalha na Ásia. O Brasil era um dos destinos.

Os integrantes do programa chegaram a ser expulsos do Rio Grande do Sul pelo então governador Leonel Brizola – que havia estatizado empresas de energia norte-americanas – mas encontraram terreno fértil no Nordeste, onde começavam a se organizar Ligas Camponesas. Na mesma terra que as elites tinham medo de ver se tornar uma “nova Cuba”, com lideranças como Francisco Julião surgindo, o trabalho do governo norte-americano, com investimentos de milhões de dólares e construção de sindicatos rurais, vingou.

Com o tempo, apesar da presença intensa dos EUA na região, a história foi esquecida. Agora, Weller busca recontá-la, por meio de documentos e depoimentos de seus personagens, buscando quem eram esses americanos e o que eles queriam por aqui.

O documentário entrou em circuito nacional no início do mês e estreou em Porto Alegre esta semana. Na passagem pela Capital, o diretor conversou com o Sul21 sobre a marca americana no Nordeste brasileiro:

Sul21: Tu começaste a ir atrás dessa história por um boato de que o diretor Steven Spielberg teria vivido no interior de Pernambuco, nos anos 1960, certo? Como tu encontraste a história do filme?

Fernando Weller: Esse filme começou há uns 5, 6 anos, a partir desse boato, em uma cidade chamada Afogados da Ingazeira, que fica a 8 horas de Recife, no sertão do Pajeú. Enfim, havia esse boato de que o Spielberg teria vivido lá, clandestino, fugindo da Guerra do Vietnã. Eu fui para essa cidade e comecei uma pesquisa em torno desse personagem, desse Spielberg, e acabei descobrindo várias coisas. Primeiro, que todos os americanos que passaram por lá eram “Stevens” para a população. Segundo, descobri a história dos Corpos da Paz, que eu não conhecia. Fui descobrindo aos poucos que centenas de jovens americanos foram atuar em trabalhos comunitários, não só em Pernambuco, como em todo o Brasil. Isso que era uma ideia inicial, quase uma piada, acabou se tornando uma pesquisa, aprovada pelo Fundo de Cultura de Pernambuco e comecei a acessar essa história maior sobre a presença americana, no contexto do Nordeste do Brasil.

Sul21: Esse programa do governo norte-americano, Corpos da Paz, ele realmente tinha uma relação com a ideia de combate ao comunismo no Brasil?

Fernando: Os arquivos dos Corpos da Paz fazem parte da Coleção da Guerra Fria, no Arquivo Nacional dos Estados Unidos. Eles foram uma agência criada pelo governo de John Kennedy, que atuou no mundo todo, não só no Brasil e nem só no Nordeste. Você tinha Corpos da Paz aqui no Rio Grande do Sul. Inclusive, houve um conflito histórico com o [Leonel] Brizola, na época, que expulsou esses americanos. Foi o único estado de onde os norte-americanos foram expulsos. Especificamente na região Nordeste, você tinha uma concentração não só de Corpos de Paz, mas de americanos de uma forma geral, porque havia um projeto grande chamado Aliança para o Progresso, que financiava projetos de desenvolvimento econômico e social. Então, não dá para dizer que eles foram criados para combater o comunismo. Os Corpos da Paz são uma espécie de relações públicas norte-americano. É um programa criado pelo Kennedy com uma ideia de mudar um pouco a visão que se tinha dos americanos no mundo. Na época, havia uma expressão “americanos feios”, o Kennedy propôs uma espécie de limpeza dessa imagem, dessa figura vista como arrogante, imperialista velho e investiu em um exército de jovens que iriam atuar em trabalhos comunitários.

O presidente dos EUA, John Kennedy, ao lado do presidente do Brasil, João Goulart, pouco antes do golpe apoiado pelos americanos | Foto: Divulgação


Sul21: Como funcionava esse trabalho? Era parecido com missões?

Fernando: Em cada país, em cada contexto, você tinha trabalhos específicos. Basicamente, eles atuavam em trabalhos agrícolas, trabalhos ligados à saúde pública. No Nordeste, eles atuaram mais em programas de saúde, vacinação, combate à esquistossomose, nutrição infantil e projetos agrícolas. O perfil [dos participantes] era jovens, brancos, classe média, que não tinham formação nessa área. O que acontece é que, ao longo dos anos 1960, você tem cada vez mais o alistamento de homens jovens por conta da Guerra do Vietnã. Muitos queriam uma alternativa de trabalhos civis, antes de ter que atuar na Guerra. [O programa] era uma possibilidade de fuga, para não precisar servir no Vietnã.

Sul21: Apesar do trabalho não ser focado no combate ao comunismo, existia uma preocupação dos EUA com os movimentos camponeses da região, não?

Fernando: Exato. Ele está ligado ao combate ao comunismo, mas de uma forma indireta. Na verdade, os americanos estavam numa disputa simbólica na região Nordeste, para propor uma via liberal de desenvolvimento para a região. Ou seja, uma alternativa para o comunismo. Eles faziam programas de desenvolvimento rural, com essa lógica bem americana do “vamos fazer nós mesmos”, sem precisar do Estado.

Sul21: Quais os efeitos práticos que isso teve? Desarticulou movimentos e lideranças?

Fernando: Na prática, não só os Corpos da Paz, como todos esses programas norte-americanos, colocaram milhões de dólares naquela região e, como falam alguns dos testemunhos que estão no filme, esse dinheiro não se viu, não se sabe para onde foi. Na verdade, a “ameaça comunista” era muito superestimada pelo governo norte-americano e pelas elites locais. Não dá para dizer que foi a intervenção norte-americana que desarticulou os movimentos dos trabalhadores do campo. Na verdade, foi a ditadura militar que fez isso mais concretamente, prendendo e matando pessoas, e essa atuação americana, acho que a História vai julgar.

Sul21: Tu falaste do contexto em que tudo isso aconteceu, no período de ditadura. No final, os americanos que participaram dos Corpos de Paz dizem que sabem que estavam aqui, durante um golpe, auxiliado pelo governo dos EUA. Eles sentiam ou sentem conflito com essas questões?

Fernando: Para mim, esse é o cerne do filme. O filme trata de uma grande contradição, que é você ter jovens americanos que fugiam da Guerra do Vietnã porque não se alinhavam ao pensamento da política externa norte-americana, que acabaram atuando em projetos comunitários, inseridos num contexto de combate ao comunismo e manutenção das estruturas sociais e políticas do Nordeste. É uma super contradição. Muitos deles só se deram conta depois. Só quando voltaram aos Estados Unidos é que eles perceberam que, de alguma forma, foram instrumentalizados. Ao mesmo tempo, qual a alternativa que eles tinham? É um dilema moral, o que fazer diante dessa situação: ir para o Vietnã ou atuar em programas que estão servindo de fachada para outros interesses?

Um dos americanos participantes do Corpos da Paz dá entrevista ao documentário | Foto: Divulgação


Sul21: Tem algum depoimento que te marcou e exemplifica isso?

Fernando: Acho que todos, de alguma forma, falam sobre isso. O depoimentos mais contundente, para mim, é do suposto agente da CIA. Não quero antecipar o final do filme para as pessoas, mas, no final das contas, ele explica um pouco porque eles estavam ali e porque a gente vive nesse situação que vive no Brasil, até hoje. Ele atribui o nosso insucesso político à uma falta de organização. Os americanos foram muito organizados nessa atuação, muito sistemáticos.

Sul21: Essa presença americana também criou algumas teorias da conspiração na região. Tu concordas que foi isso ou nós que estamos inclinados a ler assim a influência estrangeira no Brasil?

Fernando: Acho que os americanos já deram provas mais que consistentes que eles intervêm na política de vários países do mundo, das maneiras mais diversas. Então, suspeitar da interferência americana na política do Brasil – e nos acontecimentos recentes – acho que é mais do que natural. Estranho seria a gente não acreditar que os americanos estão envolvidos nesses processos que estão acontecendo aqui. O filme demonstra que os americanos, por exemplo, tiveram interessa na compra de sedes de sindicatos rurais em cidades mínimas como Orobó, como Bom Jardim, em Pernambuco. Eles articularam sindicatos rurais com lideranças da Igreja Católica. Você fica pensando: por que o império norte-americano teria interesse tão capilar, tão firme, de intervenção numa realidade rural do Nordeste do Brasil dos anos 1960? Se eles fizeram isso, naquela época, porque não estariam interessados com o que acontece numa empresa gigante como a Petrobras? Falar em teoria da conspiração é uma grande ingenuidade. E é tudo o que os americanos não são: ingênuos.

Sul21: Sobre a participação da Igreja Católica, em muitos pontos do país, com a Teologia da Libertação, ela ajudou os movimentos de luta pela terra. Lá parece que foi ao contrário. Pode comentar?

Fernando: A Igreja Católica seria outro filme, porque ela é muito complexa e acho que há vários grupos de interesse atuando nela naquele momento. No contexto do Nordeste, você tinha todo o espectro da política dentro da Igreja Católica. Você tinha desde posturas mais à direita, até mais à esquerda. O que o filme demonstra é que os americanos utilizaram uma instituição criada por setores da Igreja Católica, como forma de canalizar recursos para sindicatos rurais legalizados durante a ditadura militar. Uma parcela da Igreja atuou junto com os EUA para criar sindicatos rurais domesticados e atrair essa massa de trabalhadores rurais que estava – ou potencialmente poderia estar – envolvida com as ligas camponesas. Mas, você tinha ao mesmo tempo, atuação de padres pelo outro lado. Difícil falar da posição da Igreja de uma forma total.


Sindicatos rurais foram criados com dinheiro e auxílio dos EUA,segundo documentarista | Foto: Divulgação


Sul21: Esses sindicatos ainda têm papel político importante na região?

Fernando: Não. O que ficou? Tem um personagem no filme que era líder sindical desse sindicato criado nos anos 1960, que foi eleito por quatro vezes prefeito da cidade de Orobó depois. A gente pode imaginar que uma certa elite política, do interior do Nordeste, foi criada nesse período e teve uma ascensão nesse período.

Sul21: Tu disseste, em uma entrevista, que encontrou muito mais documentos sobre essa história nos EUA do que no Brasil, que nós não temos memória. 

Fernando: Os Corpos da Paz, por exemplo, só tem um livro escrito sobre eles no Brasil, que é da Cecília Azevedo, que tem o mesmo nome do filme. Ela foi uma pessoa que me ajudou muito no início da pesquisa. Você pergunta, inclusive para pessoas da área de História, da área de Ciências Políticas, muitas confundem os Corpos da Paz com missionários religiosos. As pessoas não têm muita noção sobre eles. O que é mais difícil de achar no Brasil é imagem. Se os documentos escritos são mal guardados, tem acesso difícil, sobretudo da época da ditadura, em que muita coisa foi destruída, as imagens, então, foram completamente relegadas. A ironia desse filme é que não teria sido realizado se eu não pudesse acessar os arquivos dos americanos. O Darcy Ribeiro, numa entrevista do Roda Viva (em 1988), disse: “A pior coisa de fazer negócio com os americanos é que eles contam tudo 20 anos depois”. De fato, é o que acontece com os arquivos americanos.

Sul21: E a importância de contar essa história, no contexto atual, quando o passado recente da ditadura militar parece estar ganhando uma revisão histórica, de pessoas questionando a repressão do regime?

Fernando: Felizmente, tem surgido uma série de filmes que abordam esse período da ditadura militar no Brasil. Desde o Dia que Durou 21 Anos, Soldados do Araguaia, uma série de filmes tentando revisitar, que acho que é uma consequência do momento político que a gente está vivendo. É uma obrigação nossa fazer com que essa memória não se apague, especialmente num momento que tem uma parcela grande da população com nostalgia da ditadura. Eu vejo comentários na página do meu filme, pessoas completamente alucinadas, sendo que ele nem aborda de forma direta a ditadura militar. Ele só fala de um contexto muito específico do Nordeste, da influência americana, e já é o suficiente para incomodar essas pessoas. A gente vive não só um esquecimento da ditadura, mas uma onda de burrice voluntária.


Documentário entrou em circuito nacional no início do mês | Foto: Divulgação

Fonte: Sul21, 22/04/2018
Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/04/tratar-como-teoria-da-conspiracao-e-ingenuidade-diz-diretor-de-filme-sobre-interferencia-dos-eua-no-nordeste/

 
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