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A história do Coronel assassinado três dias depois do golpe de 1964

  • Publicado: Terça, 03 de Abril de 2018, 17h05
  • Última atualização em Terça, 03 de Abril de 2018, 17h11
Publicado em: Abril 1, 2018

 

 

Expulso da Aeronáutica na época do golpe de 1964, aos 92 anos, Avelino Iost viu o assassinato do amigo ter motivação política reconhecida | Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Fernanda Canofre

Passava das 21h do dia 4 de abril de 1964 quando uma rajada de tiros rompeu o silêncio e ecoou nas paredes do prédio principal do atual V Comando Aéreo Regional (Comar), na cidade de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Em seguida, veio um disparo sozinho, parecido com o estouro de uma espoleta. Vinha de uma arma de calibre pequeno, um revólver calibre 32, bem diferente da primeira arma a disparar. Poucos minutos depois, da sala do comando, onde ficava o gabinete do Brigadeiro responsável, o Coronel Alfeu de Alcântara Monteiro saiu carregado e deixando um rastro de sangue.

Três dias antes, o governo de João Goulart havia sido derrubado por um golpe militar. Num momento de polarização ideológica, o presidente representava “o perigo comunista” que precisava ser detido. Com notícia de que uma armada dos Estados Unidos já estava mobilizada para apoiar os golpistas, no dia 2 de abril, Jango decidiu deixar o país e evitar uma guerra civil. Pelo dia 4, o Marechal Humberto Castelo Branco já estava empossado na Presidência.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, logo depois da rajada de tiros, o Tenente Coronel Avelino Iost, 39 anos, amigo próximo do Coronel Alfeu, se viu cercado. Cinco oficiais, empunhando armas mais modernas que as normalmente usadas pelas Forças brasileiras, apontavam para ele. Quando ergueu os olhos, viu Alfeu sendo carregado pelas escadas. Ele ainda não sabia que os ferimentos eram fatais.

Cinquenta e quatro anos depois daquela noite, Seu Avelino não lembra quantos tiros atingiram Alfeu. Apenas que todos foram na região do tronco. “Eles atiraram pra matar mesmo. Quando ele desceu a escada, a quantidade de sangue era tão grande… Não tinha como. Vi descer até um trecho, mas eu não sabia ainda que o ferimento era mortal”.

Nem ele, nem o amigo tinham ideia naquele momento do alcance que teria o golpe. Hoje, ele diz que o grupo de oficiais enviado do Rio de Janeiro para fazer a transmissão do cargo de comando já veio pronto para eliminar o Coronel que poderia trazer problemas no futuro. “Queriam era matar ele. Era sempre uma pedra no sapato, porque ele não era de dobrar opinião”, diz.

Conhecendo o temperamento do amigo, ele afirma que “seguramente, Alfeu disse alguma coisa”. Mas que tem certeza que não foi ele quem sacou a arma primeiro, como o regime afirmou por anos. 

Mais de meio século depois, uma decisão de dezembro de 2017 do juiz Fabio Hassen Ismael, da Justiça Federal, sobre uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União, confirmou o que Seu Avelino repetiu a vida inteira. A morte do Coronel Alfeu teve motivação político-ideológica, “em contexto de violação a direitos humanos”, por não concordar com o novo regime.

A versão apresentada pelo inquérito do regime, alegava que o major que matou Alfeu havia disparado por legítima defesa, quando este puxou sua arma. Ele foi absolvido pelo crime. Depoimentos de testemunhas e análise das armas usadas, porém, levaram à conclusão de que “a vítima só teria empunhado sua arma após receber os primeiros tiros disparados pelo oficial, que estaria fora de seu campo de visão”.

O juiz determinou ainda que a União retifique os dados de registros civis, militares e da Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Infoseg) sobre o caso. 

A decisão ainda pode ter recurso no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Para Seu Avelino, porém, que ainda vive no centro de Canoas, é apenas um capítulo de justiça na longa história de resistência que ele viveu junto ao amigo.


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Depois do assassinato do Cel Alfeu, ele passou meses em um navio prisão no Rio de Janeiro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

 Seu Avelino conta que conheceu Alfeu dentro da Força Aérea. O Coronel era um pouco mais velho que ele e estava um ou dois anos a sua frente. A amizade entre eles se estreitou quando ele, que era doador de sangue, ficou sabendo que o pai do Coronel precisava de doações frequentes para tratar uma doença. Avelino se ofereceu e passou a visitar a família de Alfeu todos os meses para fazer as doações.

Certa vez, quando Avelino passava um tempo trabalhando em Curitiba, estudando para entrar na escola de oficiais, Alfeu aterrissou na cidade pilotando o avião de João Goulart. Ele e o presidente eram próximos. Como o tempo estava ruim, decidiram esperar um pouco antes de seguir viagem. “Ele me chamou, me apresentou pro Jango”, lembra o amigo.

Avelino também se tornou uma das últimas pessoas com quem o Coronel Alfeu conversou antes de ser assassinado. A notícia de que um grupo de oficiais do Rio de Janeiro estava chegando ao Rio Grande do Sul, para transmitir o comando da Base para um brigadeiro apontado pelo novo governo já havia se espalhado. Com o comandante indicado de Jango tendo renunciado, caberia ao Coronel Alfeu, subcomandante, receber os golpistas.

Era sobre isso que os dois conversavam enquanto tomavam uma xícara de café. 

Avelino diz que ainda estava “tomando pulso da situação”, preocupado com o que podia acontecer. O amigo Alfeu o tranquilizou. “Ele disse: não te preocupa, oficiais que não são a favor, quando um golpe assume, eles transferem e tu vai servir no Pará. É bom, tu nunca serviu lá”. A região norte era um dos postos mais complicados dentro da Aeronáutica. “Belém não era um lugar agradável naquela época. Ele achava que eu ia pra lá e ia ter um aprendizado a mais”.

Depois da Campanha da Legalidade, comandada por Leonel Brizola, com apoio do movimento de sargentos, que garantiu que Jango tomasse posse depois da renúncia de Jânio Quadros, Canoas ficou marcada como foco de insurgência. Por isso, precisava de atenção nos primeiros dias de novo governo. “Eu comentei com [o Alfeu], porque as ameaças dos oficiais golpistas eram visíveis. Eu era contra o golpe, foi um absurdo o que aconteceu”.

Naquela noite, Coronel Alfeu se despediu do amigo rapidamente e seguiu para o gabinete. Avelino terminou seu café poucos minutos depois. Quando começou a caminhar em direção ao prédio principal, ele lembra de estranhar que vinha um número considerável de oficiais , cerca de dez homens, caminhando perto dele, poucos passos atrás. Ele seguiu. Os mesmos homens, poucos minutos depois, o cercavam no saguão.


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Na noite que o Coronel Alfeu foi assassinado, o Tenente Avelino foi preso. Primeiro, o levaram para uma sala dentro do prédio do Comando, onde ficou sozinho por algumas horas, mas com a porta entreaberta. Um dos únicos móveis do cômodo era uma escrivaninha simples, com uma gaveta. Avelino a abriu e encontrou uma arma dentro dela. “Eu desconfio que colocaram ali para eu agredir eles e terem um argumento para me matar”. Na mesma hora, fechou a gaveta.

Amanhecendo o dia 5, Avelino foi avisado de que seria levado ao Rio de Janeiro. “Quando o avião estava pronto para me conduzir, eles mandaram chamar a minha esposa e meus filhos para me despedir. Por que eu tinha que me despedir? Ali demonstraram a intenção deles”, lembra.

No Rio, ele ficou dois dias em um hotel de passagem. No dia 7 de abril, dia do seu aniversário, Avelino foi levado ao Navio Princesa Leopoldina, uma embarcação de passageiros, com cerca de 2,8 toneladas, que o Brasil havia comprado da Espanha, dois anos antes. Atracado na Baía de Guanabara, o Leopoldina seria um dos três navios usados como centro de tortura durante a ditadura. A história foi revelada pela Comissão Nacional da Verdade.

Naqueles primeiros dias de regime, Seu Avelino conta que encontrou ali sargentos, oficiais, civis, perto de 100 pessoas, “gente de toda parte do Brasil”, que estava ali por ser contra o regime de alguma maneira. Avelino perdeu as contas de quanto tempo permaneceu lá, o filho Roberto calcula que tenha sido entre dois e três meses.

O pior, segundo ele, era aguentar a tortura psicológica a que eram submetidos todos os dias. Nenhum contato com a família. Assim ele foi mantido sem noção de tempo, até o dia em que o avisaram que ele seria solto. Do mesmo jeito que foi levado, Avelino foi jogado de volta em Canoas.


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A perseguição política dentro da Aeronáutica não era novidade para Avelino Iost. Em 1959, foi reprovado em uma prova porque assinou uma ata que elegeu como paraninfo da turma Juscelino Kubitscheck, o presidente eleito, que não queriam que tomasse posse. Depois de 1961, quando fez parte da turma de sargentos que se levantou pela Legalidade e garantiu que Jango ficasse na Presidência, foi barrado na carreira pela segunda vez.

Em um livro curto de memórias em que relembra esses episódios, Seu Avelino conta que a ficha do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) com seu nome apontava que ele estava politizado e exercia atividade político partidária no interior da Base Aérea de Canoas, em discussão dentro da Base Aérea revelou ideias comunistas”.

Em 21 anos na Força Aérea, Seu Avelino construiu um currículo experiente como piloto e instrutor no Aeroclube de Santa Maria, onde formou centenas de alunos. Alguns logo se tornaram pilotos da Varig, a empresa que nasceu como uma estatal gaúcha. Ainda assim, foi retirado do posto na Base Aérea de Canoas e levado para perto do Comando, para que ficasse sob o olhar de oficiais.

Para evitar que 1961 se repetisse, antes do 1º de abril, parte das Forças Armadas trabalhou em uma articulação por todo o país para garantir o fim do governo de Jango. A ideia de que ele era comunista estava sendo incutida há tempos nos quartéis. Qualquer movimento legalista era imediatamente ligado a uma corrente comunista. 

Um desses articuladores era justamente o homem que matou o Coronel Alfeu. Próximo do General Olímpio Mourão Filho, que desencadeou o golpe, o Major era conhecido por um temperamento violento e grosseiro. Seu Avelino conta que, na época do movimento dos sargentos em defesa do petróleo, ele agrediu vários dos que foram presos. Um sargento que estava fumando, teve o cigarro arrancado da boca, com um golpe do Major.


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 “Quando o avião estava pronto para me conduzir, eles mandaram chamar a minha esposa e meus filhos para me despedir. Por que eu tinha que me despedir?” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Seu Avelino não lembra quando ficou sabendo que Alfeu estava morto. Anos depois, ouviu de um oficial que o major que o matou estava a postos, na porta da sala do ajudante de ordens do comandante, pronto para atirar, sem oferecer chance de defesa a ele. De outro colega, ouviu que o Coronel morreu a caminho do hospital, perto do Aeroporto Salgado Filho, ainda em tempo de falar algo. “Ele disse que ele morria, mas que a alma dele era branca, não como a desses caras sujos”.

A morte do Coronel Alfeu foi uma das primeiras da ditadura e uma das únicas ocorridas logo no primeiro ano do golpe. A ala golpista das Forças Armadas tinha aprendido a se articular e calculou cada passo até 1964. Quase não houve resistência ao regime militar, porque os oficiais abriram mão dela. Os subordinados apenas os seguiram.

Seu Avelino, já marcado dentro da corporação como opositor e legalista, foi dos primeiros a sair. Fora do quartel, ele seguia marcado. Ninguém queria empregar alguém mal visto pelo governo. Passou a vender sapatos de porta em porta, depois, enciclopédias, qualquer coisa que ajudasse a manter a família. Mesmo assim, volta e meia, caia outra vez preso nas mãos da repressão.

O filho Roberto lembra de um desses episódios, que aconteceu quando ele tinha cerca de 7 anos. “Eu lembro uma vez que estávamos numa festa da igreja, na Vila Fernandes, em Canoas. A qualquer agitação política, eles vinham e prendiam todo o pessoal que era vigiado. Parecia filme de espionagem. A gente estava na festa, chegou um pessoal com jipe e o levou. A gente não esquece. Numa festa, entra um bando de milico com metralhadora, armados e levam uma pessoa da família, sem dar satisfação. A festa acabou”.

Em 1979, aos 54 anos, Seu Avelino Iost conseguiu reaver os direitos políticos graças à Lei de Anistia. Uma lei que foi feita para perdoar torturadores, quando a transição entre os governos fosse terminada.

A uma semana de completar 93 anos, ele coça a cabeça tentando lembrar as expressões exatas que ouvia o amigo Alfeu usando, que eram parte tão importante de quem ele foi. A memória às vezes falha, mas Seu Avelino continua seguindo todas as movimentações da política brasileira com os olhos de quem vê a História prestes a se repetir. 

Sobre Michel Temer (MDB), ele logo diz: “Esse [presidente] atual, não devia nem ocupar aquele lugar. Mas ele é um indivíduo muito inteligente e soube conduzir a força política para assumir”.

Para Jango, ele diz, faltou darem tempo. Essa coisa complicada que, no Brasil, precisou de 30 anos de democracia para reconhecer o assassinato de um de seus melhores amigos.

 

Fonte: Fernanda Canofre, Sul 21, 01/04/2018

Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/04/a-historia-do-coronel-assassinado-tres-dias-depois-do-golpe-de-1964/ 

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