Memória, verdade e justiça: em busca de um lenço branco!
Publicado em: Março 27, 2018
Madres e Abuelas de Plaza de Mayo seguem militando em nome dos 30 mil desaparecidos no
período da ditadura argentina. (Foto: Arquivo)
Renata Maria Conte Almeida e Otávio Augusto Winck Nunes (*)
Há 42 anos atrás, nossa vizinha Argentina vivia a mais cruel e truculenta ditadura de sua história. 30 mil desaparecidos durante o período do Estado de Exceção. Muitos bebês, filhos de jovens presos, torturados, mortos ou desaparecidos, foram raptados pelos algozes de seus pais. Centenas de crianças, recém-nascidas, distanciadas de suas famílias. Essas histórias sequestradas, poderiam ter sido silenciadas para sempre, não fosse um grupo de mães, as abuelas da Praça de Maio. Há 42 anos, quando ainda eram jovens, as abuelas reclamam por justiça, pelas histórias de muitas vidas, por seus netos de volta às suas famílias.
Nesse 24 de março de 2018, milhares de jovens argentinos pintaram pelas ruas e praças de todo o país o símbolo dessas mulheres: o lenço branco! Um singelo pedaço de pano com o qual essas mulheres cobrem suas cabeças enquanto caminham em frente à Casa Rosada lembrando os filhos e netos, sequestrados e desaparecidos. Um simples objeto que lembra as lágrimas que não secam, a paz nunca alcançada, um luto impossível de ser feito. Ao caminhar com o lenço na cabeça protegem suas memórias.
Já na história do nosso país, a ditadura civil-militar que trouxe o período de Exceção a essas terras também produziu torturas, mortos e desaparecimentos, muito maior do que os números oficiais apregoam. Mas, o que faz com que os jovens brasileiros, em sua maioria, não tenham qualquer empatia, não se sintam afetados, ou mesmo, não incluam em suas reflexões, com exceções, obviamente, o horror de Estado aqui transcorrido? Será que falta um símbolo que indique um luto não realizado? Faltam mães chorando pelas praças para lembrar esses fatos?
Há, em torno desse período, um grande silenciamento. Por muito tempo, mesmo aqueles que sofreram no corpo e na alma os danos provocados pelo terror de Estado, não conseguiram falar sobre essas experiências, por certo, traumáticas e mortíferas.
Após ser condenado por crimes de lesa-humanidade, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, o Estado brasileiro criou, através da Comissão de Anistia, um projeto potente para oferecer reparação psíquica aos afetados pela violência do Estado ditatorial. Esse projeto, o Clínicas do Testemunho, foi encerrado em dezembro de 2017, depois de 5 anos de funcionamento, sem o estabelecimento de uma política pública, que era um dos seus objetivos.
Mas, com o final do projeto, algumas interrogações se impõem: terá ele contribuído para a transmissão de uma experiência, como a que foi vivida durante a ditadura brasileira? Terá ajudado na construção de uma política da memória com força e pregnância junto às gerações nascidas sob o silenciamento das arbitrariedades do Estado?
Embora de difícil e complexas respostas não podemos nos furtar a levantar essas interrogações na medida em que nosso país tem sido pródigo em ações que pretendem apagar, ou pior, negar os fatos históricos que nos constituem. A presença constante da violência como elemento que destrói os laços discursivos que nos organizam é um sinal que o próprio Estado não consegue elaborar de outra forma os excessos que ele mesmo perpetua.
Retornamos aos lenços brancos pintados por toda a Argentina na data que lembra os 42 anos de luta das avós da Praça de Maio. Incansáveis, elas inscreveram sua dor, sua busca por justiça não só nos argentinos, mas em várias partes do mundo onde foram reconhecidas. Seus movimentos constantes em frente à sede do governo do país, mesmo durante o período militar, impediram o silenciamento total sobre a violência de Estado sofrida por todos e permitiram que a transmissão de uma parte da história argentina não fosse subtraída do seu encadeamento e, assim, alcançasse as novas gerações.
Essas mulheres seguem militando em nome dos 30 mil desaparecidos no período da ditadura. Elas, com seus atos de luta diária por memória, verdade e justiça, nos dão um testemunho precioso de que lutar para enterrar filhos e filhas, recuperar netas e netos, nesse movimento que é público, ajudou a construir muito mais do que desejavam. Ajudou ao próprio país a enterrar seus mortos, a reencontrar seus desaparecidos. Elas fizeram da Argentina um país que sabe que a morte de um atinge a todos, que a violência contra um é contra todos, que o estupro de uma, estupra a todos. Elas lembram e nos ensinam que a memória individual se constrói coletivamente.
O próximo domingo será 31 de março, aproxima-se a data alusiva ao penúltimo golpe de Estado no nosso país, quando um presidente legitimamente eleito foi deposto. Mais do que motivo de orgulho, seria emocionante e promissor sabermos que aqui também já tivéssemos a compreensão de que as violações do passado atingiram e atingem a todos nós, atualizando-se no dia a dia de Marielles, Andersons, Amarildos, Renatas e Otávios.
Agradecemos à nossa colega Sandra D.Torossian que gentilmente nos cedeu esse espaço para expressamos nossa inconformidade com o fim do Projeto Clínicas do Testemunho. Um projeto com potencial de criar lenços brancos, memória, verdade e quiçá, justiça aqui também. Aprendemos com as abuelas que é em nosso caminhar em torno do desejo de justiça que a transmissão da verdade às gerações pode criar memória. Memória coletiva. Seguiremos.
(*) Psicanalistas, membros da Appoa.
Editoria: Coluna APPOA
Fonte: Sul 21, 27/03/2018
Disponível em: https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-appoa/2018/03/memoria-verdade-e-justica-em-busca-de-um-lenco-branco/
Redes Sociais