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Elizabeth Teixeira e Margarida Alves traduzem luta feminina por direitos no campo

  • Publicado: Sexta, 09 de Março de 2018, 16h10
  • Última atualização em Sexta, 09 de Março de 2018, 16h33
A busca por direitos, principalmente no campo, tem nomes de mulheres paraibanas.
Por André Resende, G1 PB
09/03/2018 08h13  Atualizado há 3 horas
Elizabeth Teixeira, aos 93 anos, ainda lúcida, mostrando registros históricos da sua luta pelos trabalhadores do campo no livro de Ayala Rocha (Foto: André Resende/G1)
 
Feminina como a terra. Feminina como a luta. Feminina como a Paraíba, a despeito do xote conhecido nacionalmente pela voz de Luiz Gonzaga. Femininas como Elizabeth Altino Teixeira e Margarida Maria Alves. Mulheres que, mais que muitos machos, lideraram a mobilização por direitos, terra e dignidade. Passados mais de 50 anos, as Ligas Camponesas que "incendiaram" o interior da Paraíba em combate aos latifúndios em meados de 1960, têm nomes de mulheres.
 
“Conversava muito com a companheira Margarida depois de assumir a luta de Pedro”. A lembrança e as mãos vacilam, calejadas por 93 anos, mas a lucidez não deixa Elizabeth Teixeira esquecer completamente dos momentos em que participou de atos políticos em prol dos camponeses na busca por terras em meados da década de 1960.
 
Elizabeth assumiu a liderança camponesa da cidade de Sapé após a morte do marido. Margarida Maria Alves, líder sindicalista que defendeu os agricultores de Alagoa Grande e a amiga de quem Elizabeth recorda, morreu por comandar a mesma luta.
 
Elizabeth Teixeira e Margarida Alves não buscaram apenas melhores condições de vida no campo, mas ditaram a participação feminina nos movimentos sociais do interior paraibano, ainda tímido na época. Ainda que, mas não menos importante, mais pela necessidade de não aceitar as condições de sobrevivência, do que propriamente a luta feminista que viria servir de inspiração para a Organização das Nações Unidas (ONU) decretar o 8 de março como Dia Internacional da Mulher em 1975.
 
 
Morando com um dos 11 filhos que teve em João Pessoa, a 42 km de Sapé, onde liderou a liga deixada pelo marido, Elizabeth conta que não se arrepende de ter enfrentado a repressão dos jagunços dos grandes donos de terra e dos policiais. A perda do marido, assassinado pelas autoridades policiais da época a mando de latifundiários, abriu um caminho de protagonismo que até então poucas mulheres tinham vivenciado.
“A mulher tem que lutar, cobrar seus direitos, tem que ter coragem. Eu tive que ter coragem para continuar a luta e buscar uma vida melhor para os trabalhadores, para os camponeses. Tive também que ter força para aguentar as prisões e ameaças. Não podia ter medo”, declara Elizabeth.
Além do desafio de liderar trabalhadores e trabalhadoras em um contexto político delicado, com ameaças constantes, Elizabeth Teixeira precisava superar a desconfiança pelo fato de ser mulher e mostrar força perante as represálias.
 
“Diziam ‘como você vai continuar a luta de João Pedro com tanto homem que pode fazer isso?’, mas eu continuei. Quando eu era presa, os policiais falavam que eu não devia fazer isso, que eu ia ser presa por conta de ter assumido o papel do meu marido. Eu passava dois, três dias de prisão, depois voltava e dava continuidade à luta do campo de novo”, conta.
 
E foi justamente após ser libertada pelos militares, quando estava pronta a retornar para Sapé, a líder da Liga Camponesa recebeu um alerta de que se retornasse, seria morta, assim como seu marido. No paradoxo de estar livre e condenada a ser perseguida, e muito provavelmente assassinada, Elizabeth Teixeira decide sumir. Muda para cidade de São Rafael, no estado vizinho do Rio Grande do Norte, com apenas um dos dez filhos, tendo em vista que uma das meninas havia morrido.
 
 
É na pequena cidade potiguar que ela passa quase 20 anos vivendo como Marta Maria da Costa com seu filho até meados da década de 1980, quando o cineasta Eduardo Coutinho localiza Elizabeth para a conclusão da transformação do seu filme de ficção, inicialmente, no documentário premiado Cabra Marcado Para Morrer. Foi por intermédio do cineasta que ela conseguiu reencontrar os filhos deixados desde a partida e, beneficiada pela Lei da Anistia de 1979, voltou a morar na Paraíba e assumir sua verdadeira identidade.
 
“Eu falava para os meus filhos, para a minha filharada, que se eu fosse presa ou morta, que eles procurassem a casa dos avós, das tias deles. Eu sabia que podia ser que não voltasse, mas não tinha medo”, afirma Elizabeth.
 
Elizabeth Teixeira passou quase 20 anos na clandestinidade até reencontrar os filhos por intermédio do cineasta Eduardo Coutinho (Foto: Cabra Marcado Para Morrer/Reprodução)
 
Sem a força física de outrora, quando enfrentava o machismo e as ameaças dos jagunços e policiais, mas resistência da vontade mental, Elizabeth Teixeira não abandona o discurso que a fez participar de reuniões e debates políticos onde era a única mulher presente. Resultado da soma da fé religiosa e política com o amor que ainda nutre pelo marido João Pedro Teixeira.
 
“Não me arrependo de ter feito o que fiz. Sabia que tinha que continuar a luta de Pedro, por tudo que ele era para mim e por tudo que tinha feito pelo povo do campo. Vi muita criança morrer de fome por não ter onde plantar, gente que sofria de verdade. O trabalhador do campo merece tudo. É motivo de orgulho para mim saber que consegui ajudar”, avalia a ex-líder camponesa.
 
As palavras vagueiam por quase um século de vida, recontam o início do romance com João Pedro Teixeira, que não era aceito por sua família, a fuga para casar, a condição social confortável que tinha por conta das terras e comércio do pai. Confessa durante a conversa que era rebelde para uma mulher da época, mas que tinha no padrinho um amigo, um protetor e interventor quando se tratava de dialogar com os pais.
 “Sofri muito por ter assumido o lugar de João Pedro. Prisões, muitas palavras horríveis foram faladas contra mim. Às vezes ficava chorando, pensando na vida, passando noites sem dormir. Tantos anos longe dos meus filhos. Mas cumpri minha missão”, declara assertiva.

Da pequenina onde o bodoque não há de quebrar, uma idosa, moradora de uma casa simples no bairro de Cruz das Armas, desafia o tempo e transcende a luta. Elizabeth Altino Teixeira é o “não, senhor”, o ponto da história que traduz o porquê da Paraíba ser feminina.

 As Ligas Camponesas e o legado de Elizabeth
Para entender o desafio da primeira mulher na liderança da Liga de Sapé, é preciso conhecer um pouco da história das Ligas Camponesas paraibanas no final da década de 1950. De acordo com o relatório final das pesquisas feitas pela Comissão Estadual da Memória e da Verdade da Paraíba (CEMVP), nenhum outro movimento popular retratou melhor a indignação do cenário econômico do campo quanto as Ligas Camponesas.
 
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“A questão agrária na Paraíba só passou a ser questionada no final da década de 1950, com as mudanças profundas ocorridas nas relações de produção no interior do sistema latifundiário, que culminaram com a expropriação definitiva do camponês e a sua consequente expulsão da terra. Neste momento, os camponeses começaram a resistir, com a criação das Ligas Camponesas e dos sindicatos rurais”, apresenta o relatório.
 
As Ligas espalharam-se rapidamente por várias cidades da Paraíba, atingindo um total de 15 entidades, com cerca de quarenta mil sócios. A Liga de Sapé, liderada por João Pedro e posteriormente por Elizabeth foi a maior do Brasil, chegando a contar com 13 mil membros.
 
Não satisfeitos com organização dos camponeses, muitos dos grandes proprietários de terra reagiram de forma mais rigorosa, usando a repressão e a força contra as manifestações. No primeiro momento faziam ameaças, para em seguida proceder com agressões físicas e mortes, ainda conforme relatos e pesquisas feitas pela Comissão Estadual da Verdade.
 
Iranice Gonçalves Muniz, pós-doutora em Direito pela UFPB e integrante da CEMVP, além de membro colaboradora do Núcleo de Direitos Humanos, destaca que a história de Elizabeth Teixeira estabeleceu um marco no engajamento da mulher nos movimentos sociais do campo. Iranice, que também foi responsável por ouvir Elizabeth Teixeira pela Comissão da Verdade, garante que a luta de paraibana de Sapé emancipou e inspirou a mulher do campo.
 
Mesmo aos 93 anos, apesar dos problemas de visão, Elizabeth ainda consegue ler. (Foto: André Resende/G1)

“Mesmo que muitas vezes retratem apenas como a viúva de João Pedro, Elizabeth teve vida própria como líder sindical e das ligas. Isso influenciou muito Margarida em um outro momento político. Na verdade a Margarida é uma continuação da política de Elizabeth e da luta no campo que é retomada na reabertura democrática pós-ditadura”, argumenta Iranice Muniz.
 
A ligação entre as duas é tão próxima que o mesmo grupo acusado de mandar matar João Pedro Teixeira em abril de 1962 é o mesmo que é suspeito de ordenar a execução de Margarida Maria Alves na frente dos seus filhos e marido em agosto de 1983. “São dois nomes que representam muito para luta do campesinato na Paraíba e no Brasil, bem como do ativismo político protagonizado por mulheres”, concluiu a professora.
 
Como líder dos sindicatos dos agricultores e agricultoras de Alagoa Grande, Margarida Maria Alves foi responsável pela judicialização de vários desrespeitos cometidos pelos grande proprietários de terras contra os trabalhadores. Lutou pelos direitos trabalhistas no campo até seu assassinato. Conforme relatório final da Comissão Estadual da Memória e da Verdade, 34 anos depois do crime, os mandantes da execução de Margarida seguem sem julgamento. 
Mulher sinônimo de luta
As histórias protagonizadas por Elizabeth e Margarida na Paraíba podem ser consideradas extensões intuitivas de um histórico feminino de lutas que tomaram forma no início do século XX, com os movimentos populares nas grandes cidades da Europa pelo direito das mulheres votarem. A historiadora Letícia Carvalho, mestra em História pela UFPE, ressalta que o Dia Internacional da Mulher foi o marco mais importante da luta pela organização e mobilização das mulheres trabalhadoras. 
“Ao contrário do que foi difundido, o 8 de março não surge após o incêndio da Triangle Shirtwaist Company, nos Estados Unidos. O dia nasce fruto do acúmulo das militantes socialistas que já aprofundavam seus estudos sobre igualdade desde o século XIX. Devemos lembrar que a luta mais mobilizadora de mulheres ao longo do mundo nesse momento era a conquista do sufrágio universal”, explica Letícia Carvalho.
Mesmo após tantos avanços no campo social, a conquista de direitos que se tornaram naturais para a sociedade no século XXI, a luta pelo avanço da igualdade de gênero permanece a mesma. Para Iranice Muniz, professora e pós-doutora em Direito pela UFPB, o machismo enfrentado por Elizabeth Teixeira no século passado permanece, mas de outras formas, seja na violência sexual, seja em forma de feminicídio.
 
“As dificuldades são parecidas. Tem uma passagem de Elizabeth na Comissão da Verdade, quando ela foi chamada na polícia, que o delegado fala que lugar de mulher é cuidando dos filhos. Na atualidade, no meio urbano, as mulheres são criticadas não só por estarem ligadas a movimentos, mas também pelos desejos enquanto humanos de se vestirem da forma que tiverem vontade, por exemplo”, comenta.
 
Letícia Carvalho pontua que a “maior missão atualmente é resgatar ano após anos o percurso histórico percorrido pelas mulheres até hoje e mostrar como a luta por respeito, igualdade e dignidade ainda é muito longa para nós mulheres”.
 
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