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‘Queríamos na Constituição: homens e mulheres são iguais. A palavra todos era pouco’

  • Publicado: Sexta, 09 de Março de 2018, 12h25
  • Última atualização em Sexta, 09 de Março de 2018, 12h35

Juliana Domingos de Lima 08 Mar 2018 (atualizado 08/Mar 16h29)

Em entrevista ao 'Nexo', Schuma Schumaher faz retrospectiva histórica de momentos das lutas das mulheres no Brasil

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

 

Schuma é autora dos livros 'Mulheres No Poder - Trajetórias na Política a Partir da Luta das Sufragistas do Brasil' e 'Dicionário mulheres do Brasil'

Uma reflexão sobre o Dia Internacional da Mulher, na perspectiva das brasileiras, poderia passar pela lembrança das datas de algumas conquistas de cidadania. O direito ao voto foi obtido há 86 anos. O de frequentar a universidade, há 137. A primeira lei brasileira a criminalizar a violência doméstica tem apenas 12 anos.

No plano constitucional, o princípio da igualdade entre homens e mulheres aparece de forma genérica pela primeira vez na Constituição Brasileira de 1934. No entanto, somente com a Constituição de 1988 o ele se estendeu a todos os direitos e obrigações, inclusive à propriedade. Até o início do século 20, as mulheres eram legalmente dependentes do pai e, depois de casadas, do marido, perante o qual tinham o mesmo status legal que os filhos.

“Parece que não é nada, mas a Constituição anterior e a que estava sendo escrita [a de 1988], diziam: ‘Todos são iguais perante a lei’. Nós brigamos muito nos corredores, foram muitos dias e horas e conversas, porque queríamos que explicitassem: ‘Homens e mulheres são iguais perante a lei’. ‘Todos’ era pouco pra gente, ‘todos’ são sempre os homens”, disse Schuma Schumaher, em entrevista ao Nexo.

Schuma é coordenadora da REDEH, a Rede de Desenvolvimento Humano e integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras. Participou da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 e é autora livros sobre as mulheres brasileiras, entre eles “Mulheres No Poder - Trajetórias na Política a Partir da Luta das Sufragistas do Brasil” e “Dicionário mulheres do Brasil - de 1500 até a atualidade”.

Quais pautas você considera mais urgentes para as brasileiras neste 8 de março?

Schuma Schumaher São muitas. A primeira é o enfrentamento da violência, portanto, “nenhuma a menos”. Contra os feminicídios, assédios, espancamentos. É um tema antigo, mas, infelizmente, atual, uma vez que as mulheres continuam, ainda, subjugadas, violentadas, em uma sociedade bem patriarcal e machista.

Um outro tema muito caro ao feminismo é a questão da autonomia das mulheres para decidirem o que querem fazer diante de uma gravidez indesejada. Se querem levar a termo, por conta das suas convicções religiosas, pessoais, íntimas, que levem, que tenham um atendimento digno. E, se não querem levar a termo uma gravidez indesejada, que não foi pensada, que também tenham autonomia para isso. Portanto, a questão do aborto.

A resistência à Reforma da Previdência é um outro tema, porque as mulheres serão bastante atingidas se isso for levado adiante. Há uma discussão muito quente em relação à diferença de aposentadoria entre homens e mulheres.

Queriam igualar [as idades mínimas], há uma resistência, e talvez seja diminuída em dois ou três anos. A maternidade é uma função social. É no corpo das mulheres que são geradas as gerações futuras, e ainda cabe a elas a responsabilidade da educação, do cuidado, não só dos filhos, como com os mais velhos, com a casa.

O dia em que a gente tiver o trabalho doméstico totalmente dividido, [quando] for uma responsabilidade de quem vive naquele teto, aí a gente pode discutir a igualdade na aposentadoria. Por enquanto, não. 

A Constituição de 1988 completa 30 anos em 2018. Como foi a participação de feministas na Constituinte?

Schuma Schumaher Vou falar sobre isso, inclusive, amanhã [7 de março] em uma sessão especial no Congresso Nacional. Esse ano, em vez de o prêmio Bertha Lutz homenagear cinco mulheres, como fazem todos os anos, resolveram homenagear as 26 deputadas constituintes de 30 anos atrás.

Nós tínhamos saído de uma ditadura. O movimento feminista e os movimentos sociais estavam muito atentos, confiantes, esperançosos nesse processo de redemocratização. Por outro lado, tinha sido criado, na estrutura do governo federal, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que, por sorte, foi um organismo em que, não só a presidência, como as conselheiras e as técnicas, eram todas feministas.

Com isso, o conselho lançou aquela campanha “Constituinte sem mulher fica pela metade”, e com ela, de 8 deputadas federais que tínhamos em 1985, elegemos 26 em 1986. Foi o pleito eleitoral de maior ascensão do número de mulheres no Congresso, triplicou. E foi lançada uma campanha nacional. Fizemos encontros e reuniões em todo o Brasil, depois um grande encontro nacional, e dele tiramos a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.

Essa carta tinha as nossas reivindicações, o Brasil inteiro tinha sido consultado e se mobilizado. Portanto, era uma carta pactuada entre diferentes grupos, setores, organizações da sociedade civil, com as deputadas e conselheiras. Ela acabou sendo o documento que embasava o nosso lobby, o “lobby do batom”, no Congresso Nacional.

Fomos muito felizes porque 85% das propostas contidas nesta carta foram incorporadas à constituição brasileira. Acho que foi um avanço tremendo para nós mulheres.

Duas questões ficaram fora: a do aborto e da orientação sexual. Mas conseguimos garantir outras: licença maternidade de 120 dias; licença paternidade de 8 dias; que o Estado assumisse a responsabilidade sobre a violência doméstica – portanto, consta no texto constitucional a garantia de mecanismos que a coíbam –; direito à posse da terra ao homem e à mulher, independente do estado civil; igualdade de direitos e salários entre homens e mulheres; igualdade conjugal; ampliação do conceito de família; direitos sexuais e reprodutivos; direitos trabalhistas e previdenciários às empregadas domésticas; creches no local de trabalho. Claro que algumas dessas questões não acontecem na prática, mas eram propostas e entraram no texto.

O “lobby do batom” era composto pelo Conselho Nacional [dos Direitos da Mulher], pelo movimento feminista, e pelas parlamentares da época.

Parece que não é nada, mas a Constituição anterior e a que estava sendo escrita naquele momento, diziam: “Todos são iguais perante a lei”. Nós brigamos muito nos corredores, foram muitos dias e horas e conversas, porque queríamos que explicitassem: “Homens e mulheres são iguais perante a lei”. “Todos” era pouco pra gente, “todos” são sempre os homens. E foi explicitado. Parece uma coisa pequena, mas simbolicamente é uma questão muito importante porque, infelizmente, o universal ainda é masculino.

Desde então, a mobilização de mulheres gerou outros dispositivos legais voltados ao combate da violência de gênero, como a Maria da Penha e a tipificação do feminicídio. Depositamos excessivamente nossas expectativas em soluções legais?

Schuma Schumaher  Não. Mas faço parte do feminismo a partir da chamada “Segunda Onda” e a gente sempre trabalhou com a seguinte questão: tudo bem trabalhar com a legislação, com políticas públicas, mas o que precisa ser transformado mesmo é a sociedade. A gente só vai avançar de verdade quando isso acontecer.

Mas, de certa maneira, quando a lei está sendo feita, acaba provocando um debate muito grande e essa é uma das maneiras de fazer as pessoas pensarem sobre o assunto. [A lei] acaba pautando a discussão na mídia, na sociedade, nas famílias. Ela vale muito por isso.

Outra questão é a aplicabilidade. Não basta ter lei. Quando, em 1985, criou-se a primeira delegacia de atendimento às mulheres vítimas de violência, a equipe que ia trabalhar nela tinha toda uma formação. O que a gente queria era uma delegacia humanizada, que acolhesse aquela mulher que chega com dificuldade de falar, de fazer um boletim de ocorrência contra uma pessoa em quem depositou afeto, depositou sua vida. Esse é um passo muito difícil. Ela não pode, nesse momento, ter um atendimento violento, que era o que acabava acontecendo.

As delegacias vieram com uma grande expectativa mas, depois, no meio do caminho, as coisas vão se deturpando: nem todas as delegacias atendem adequadamente as mulheres, infelizmente. É preciso que a sociedade esteja atenta.

No seu livro “Mulheres no Poder”, você analisa a participação política das mulheres no Brasil desde o movimento sufragista, pelo direito ao voto. O que caracterizava a luta das mulheres naquele momento inicial?

Schuma Schumaher A luta pelo sufrágio começa, na verdade, por iniciativas muito pessoais, individuais. Vai passar a ter uma estratégia coletiva só lá pela segunda década do século 20, quando a Leolinda Daltro se deu conta de que era proibido as mulheres votarem, mas que não estava escrito em lugar nenhum que era proibido que mulheres criassem um partido. Então, ela vai criar o Partido Republicano Feminino, fazer passeatas, já começa a agitar coletivamente a sociedade. Depois vem Bertha Lutz, que vai liderar esse processo no Brasil inteiro.

A questão do acesso à educação era muito forte para elas. As brasileiras só conquistaram o direito de ir para a universidade em 1881. E era não só pelo acesso, mas para que elas tivessem uma educação qualificada e não de boas maneiras, economia doméstica.

Mas o lugar de cidadã de segunda classe não era questionado por elas como uma coisa estrutural. Não questionavam muito as relações de poder, não tinha muito envolvimento de mulheres [das classes] populares, eram mulheres em geral da classe média. Embora tenha sido uma luta valorosa – foi por causa delas que nós nos tornamos cidadãs –, ainda tinha um perfil burguês. As trabalhadoras das fábricas também se mobilizaram, mas por questões de horários de trabalho, insalubridade, salário. Elas não faziam parte do mesmo grupo.

As sufragistas não estavam panfletando na frente das fábricas.

Schuma Schumaher Exatamente, não estavam. Estavam sobrevoando as capitais e soltando panfletinhos em defesa do voto. Elas eram super criativas. Sobrevoaram cidades naqueles [aviões] teco-tecos soltando filipetas. Isso aconteceu no Rio de Janeiro e parece que também em Natal. Faziam teatro com o tema do sufrágio feminino. Tinham um lobby no Congresso, que era aqui no Rio, muito forte. Faziam abaixo-assinados, tinham muitos jornaizinhos. Eram bem articuladas. 

E em um dos congressos das sufragistas, da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, levantaram a questão dos direitos das empregadas domésticas. E escreveram um decálogo em que falavam sobre “votar nas mulheres comprometidas com a causa das mulheres”.

Em que estágio dessa reivindicação por participação estamos hoje?

Schuma Schumaher Estamos em um estágio… dinossáurico. É uma vergonha termos, no máximo, 12% de representação, seja no executivo municipal, estadual ou nacional. Se as mulheres são 52% da população brasileira, 51% dos votantes, não é possível continuarmos com essa representação vergonhosa.

Estamos em um estágio muito atrasado. Os dados revelam o machismo, a força do patriarcado, do racismo – porque a comunidade negra também não está lá representada. Revela o pouco interesse dos partidos políticos em, de fato, implementar a lei de cotas e mudar essa realidade.

Temos uma lei [que determina] 30% de mulheres candidatas. Ela é muito mal cumprida, é quase uma fraude. Em 2016, por exemplo, 15 mil candidatas a vereadoras tiveram zero votos, nem elas mesmas votaram. O que demonstra que eram candidaturas fantasma, obviamente, para cumprir a obrigatoriedade da lei de cotas.

A gente não quer só eleger mulher, não basta ser mulher. Porque o machismo não está impregnado só nos homens. Infelizmente, muitas mulheres ainda também reproduzem o machismo e muitas acabam entrando na política por serem herdeiras de famílias tradicionais, profissionais da política. Não são eleitas comprometidas com uma agenda de transformação da realidade das mulheres. Queremos não só ampliar a nossa representação como ampliar a representação com mulheres comprometidas com a luta das mulheres e a agenda feminista.

Como você vê a atuação das feministas contemporâneas? Você identifica novas estratégias e formas de ação?

Schuma Schumaher Identifico. São um bando de lindas doidas. Sou uma feminista jurássica das mais felizes do mundo por um dia ter abraçado o feminismo, encontrado com ele. Saio para a rua, vou para as manifestações e olho para elas como herdeiras dessa luta, que vêm com muita garra, resistência, criatividade, radicalidade. E trazendo muita gente.

O feminismo traz uma perspectiva nova, de bem viver. Por isso, cada vez mais, questões macro estão entrando na pauta feminista. O enfrentamento da violência, para mim, é uma questão macro. São questões que podem transformar vidas, por isso ele se popularizou.

Você vê essa discussão chegar, recentemente, a um espectro mais amplo de brasileiros?

Schuma Schumaher Acho que o feminismo hoje em dia se espalhou pelo Brasil, se popularizou, está melhor compreendido – não é uma luta contra os homens, está compreendido que é uma luta por uma transformação pelo bem-estar de toda a sociedade.

Percebo um incômodo muito menor dos homens [com o feminismo hoje] em relação à minha época. Na minha época, eles já reagiam rapidamente de uma forma muito ruim, desrespeitosa com o feminismo.

Hoje você vê – não são todos – homens que já tentam compreender o que é isso, que tentam se solidarizar, tem até aqueles que querem ser feministas. Eu costumo dizer que não tem homem feminista, tem “feministo”. É um jeito de estar no mundo, a partir da perspectiva da sua identidade de gênero.

Acho que hoje já é um debate mais amplificado, menos restrito, há uma compreensão melhor de que, se o feminismo pudesse de fato agendar as nossas vidas e os nossos cotidianos, seria bom para todo mundo.

Pra quem não acredita nisso, é só pensar em 20 anos atrás. Há 20 anos, se você fosse em uma reunião de pais e mestres só tinha mães. Hoje, já há muitos homens acompanhando a educação dos seus filhos, se você vai a uma praça, tem muitos homens passeando com seus filhos nos fins de semana.

A relação dos homens com seus filhos mudou, deixou de de ser apenas uma relação de provedor para ser também uma relação de cuidado e afeto. E, sinto muito dizer para os homens, mas isso foi uma luta das mulheres. Foram as mulheres, nós, que, lá no processo da Constituinte, gritamos aos quatro ventos: “o filho não é só da mãe”. E é muito impressionante que, se tem uma coisa que mudou na sociedade, é essa relação dos homens com os seus filhos.

Na França, no ano passado, um grupo de mulheres escreveu uma carta contra o movimento de mulheres que vinham denunciando o assédio sexual que sofreram. Como você vê esse embate? E o movimento das denúncias?

Schuma Schumaher Sou completamente a favor do movimento de denúncias, acho super importante. Ele ocupou a mídia, chegou para mais e mais gente, seja para polemizar ou não. Quanto à carta das francesas, acho que focaram em uma frase fora de contexto. O que elas questionavam era a forma como foi lançado o movimento, que as denúncias feitas pelas atrizes americanas tinham sido exageradas.

Isso deu um debate imenso. Acabou que eu achei que valeu a pena, sabe? Porque não ficou apenas a notícia da campanha, criou-se um debate no qual todo mundo teve que se posicionar. Mas eu sou a favor de ouvir aquelas que passaram por situações constrangedoras, que se sentiram violentadas, assediadas.

Gostando ou não de como foi feito, sou completamente a favor de que se dê voz a essa mulheres e se acredite nelas, porque senão a gente vai fazer igual no passado, quando diziam “deixa isso pra lá, você é tão compreensiva, isso foi uma questão pequena”. Aqui no Brasil, já tinha havido uma campanha contra o assédio antes do #MeToo, que denunciou inclusive atores brasileiros.

É o tipo de violência tão constrangedora, tão difícil de se gritar contra. Porque às vezes [o agressor] não tocou, não bateu, mas você se sente acuada. Você percebe que o que está contando não é sua competência ou sua capacidade, mas a possibilidade de você vir a ceder a uma “cantada”.

É muito parecido com o que se passa com o racismo hoje no Brasil. Essa sutileza do racismo que é violenta, porque impede que as pessoas gritem bem alto contra aquela dor, aquele constrangimento, aquela violência: acontece no olhar, em um jeito de se afastar. Fica mais difícil de combatê-lo, enfrentá-lo. 

Fonte: Nexo, 08/03/2018
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/03/08/‘Queríamos-na-Constituição-homens-e-mulheres-são-iguais.-A-palavra-todos-era-pouco’

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