‘Fui preso e torturado dentro do departamento pessoal da Volkswagen’
Lucio Bellentani estava no chão de fábrica quando foi pego pela ditadura sob os olhares da empresa
Júnior Carvalho
Do Diário do Grande ABC
24/12/2017 | 07:00
Já se passaram 45 anos desde que o metalúrgico Lucio Antonio Bellentani, 73 anos, foi pego pela ditadura militar (1964-1985) no chão de fábrica da Volkswagen em São Bernardo e, sob olhares da segurança da montadora, foi torturado pela polícia política. Para o ferramenteiro da empresa alemã então recém-chegada ao Brasil, porém, as consequências daquela sexta-feira, 28 de julho de 1972, ainda causam tormento.
Era aproximadamente 23h30 quando policiais do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), a polícia política do governo militar, chegaram na fábrica e tiraram Bellentani de sua bancada de trabalho, na ala três da montadora. “Era um dia comum de trabalho. Me algemaram, tinham dois policiais do Dops com metralhadoras, dois guardas da fábrica e o coronel (Adhemar) Rudge (responsável pela segurança da empresa), que também estava armado. Não alegaram nada, apenas disseram: ‘nos acompanhe’. Me pegaram pelo braço e me levaram para o departamento pessoal da empresa. Chegando lá, na frente da segurança (da Volkswagen), começaram a me espancar, a me dar porradas, chutes, tapas, socos, querendo nomes. Queriam que eu dissesse quem tinha atuação sindical ou política. Por volta das 1h30 me levaram para o Dops”, relembra o ex-ferramenteiro, que foi pego depois de ter sido delatado por Amauri Danhoni, outro sindicalista preso.
Resistente, Bellentani permaneceu calado e, por conta disso, ficou em cárcere por um ano Dops. Condenado por ativismo sindical e por ajudar na formação do PCB (Partido Comunista Brasileiro), cumpriu mais oito meses de prisão no presídio Tiradentes. “O grave dessa história toda, além da tortura e da permissão da Volks acompanhando os policias, é que nenhuma das prisões tinha mandado judicial. Foram totalmente ilegais. Eu só fui indiciado depois de oito meses preso.” Dentro do Dops, os agentes da ditadura usaram de várias formas de tortura física para tentar forçar Bellentani a entregar os companheiros. “Eram choques elétricos, pau-de-arara, palmatória. Eles amarravam fios na minha orelha e a outra ponta no canal do pênis. Me davam choques e jogavam água no corpo para a coisa ser pior.”
Por conta das surras que levou na prisão, o ex-metalúrgico perdeu quase todos os dentes da parte superior da boca e até hoje sente dores na coluna. “Tenho uns problemas na coluna, mas não sei dizer se são em função do pau-de-arara ou da pancadaria. Estou cheio de hérnias de disco.”
Natural de Birigui, no Interior paulista, Bellentani chegou com a família no Grande ABC na década de 1950, justamente na mesma época em que a Volks desembarcava no Brasil e começava a fabricar as primeiras unidades do Fusca, ainda em um armazém localizado no bairro Ipiranga, na Zona Sul paulistana. Qualificado como ferramenteiro depois de trabalhar em uma autopeças no bairro andreense da Vila Humaitá, Bellentani chegou na Volks em 1964, já na planta da empresa instalada à beira da Rodovia Anchieta, em São Bernardo.
Ainda sem muita experiência em militância sindical ou política, Bellentani ingressou no PCB e ajudou a montar as bases da legenda dentro da fábrica como forma de unir a classe trabalhadora para lutar por liberdade e democracia enquanto o País assistia os direitos individuais serem reduzidos pela ditadura. Foi o suficiente para que o operário fosse considerado inimigo do governo militar.
Diante da atuação que Bellentani tinha dentro de uma empresa cujo responsável pela segurança institucional da firma era Adhemar Rudge, um antigo oficial das Forças Armadas, era fácil ser taxado como terrorista, assim como ocorreu com tantos outros militantes de esquerda no Brasil naquele período.
Bellentani chegou a ser julgado e absolvido, mas a Promotoria recorreu e o então operário foi condenado a dois anos de prisão. “Quando eu recebi a notícia, eu pensei: ‘vou cair na clandestinidade e vou embora. Não vou voltar’. Conversei com os advogados e eles me sugeriram, por eu ter ficado um ano preso, me entregar porque tinha direito à (liberdade) condicional. Me disseram: ‘dentro de 15 a 20 dias você está fora’. Voltei e fiquei mais oito meses.”
A história de Bellentani se une a de diversos outros ex-funcionários da Volkswagen que buscam reparação pelas torturas e perseguições sofridas dentro da empresa durante os anos de chumbo. Essa luta começou em 2015, após o encerramento da Comissão Nacional da Verdade. Os ex-operários denunciaram a montadora alemã ao MPF (Ministério Público Federal) por colaborar com a ditadura militar no Brasil (leia mais abaixo) e durante dois anos a empresa permaneceu em silêncio. No dia 14, a Volkswagen do Brasil veio a público e admitiu de forma oficial ter auxiliado a tortura e a perseguição a trabalhadores contrários ao regime militar no País. A empresa divulgou pesquisa feita por Christopher Kopper, professor doutor da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, cuja conclusão foi de que o apoio aos militares não foi institucional, mas que a repressão foi avaliada “positivamente” pelos diretores da Volks na época. Kopper pontuou que não foi possível avançar nas investigações porque quantidade desconhecida de documentos ficou destruída, o que revoltou os ex-metalúrgicos. “A Volks está alegando que os documentos foram destruídos. Não concordo, eu acho que eles estão negando informação, estão querendo fugir da responsabilidade”, criticou Bellentani.
Por conta dos traumas, o ex-metalúrgico revela ter pesadelos à noite e, dormindo, acaba machucando a mulher. “Eu sonho que estão vindo me interrogar e me torturar.”
Caminho adotado é decepcionante, diz procurador
Responsável pelo inquérito civil aberto em 2016 para investigar o papel da Volkswagen do Brasil durante a ditadura militar, o procurador Pedro Machado, do MPF (Ministério Público Federal), afirmou que estuda a pesquisa divulgada pela montadora, mas criticou o fato de a empresa não admitir que deu, de forma institucional, apoio às perseguições e torturas. “Ainda estamos estudando com atenção a íntegra desse relatório divulgado e também aguardando a remessa do relatório oficial. Mas se realmente esta for a opção da empresa, isto é, de resumir a questão à atuação de um subordinado (Adhemar Rudge), de não assumir responsabilidade, penso que o caminho adotado é decepcionante”, disse.
Machado destacou ainda que, desde que as investigações começaram, não houve colaboração espontânea ou voluntária por parte da Volkswagen. “A empresa apenas respondeu formalmente aos ofícios que o MP lhe enviou. Os documentos que nos enviou nada acrescentou para as investigações. O que se tem agora é esse relatório produzido pelo historiador por eles contratado.”
O procurador frisou que, pelos depoimentos ouvidos e documentos analisados, “foram arrecadados elementos de convicção” de que os relatos dos ex-trabalhadores são verídicos. “Pensamos, todavia, que são necessários os procedimentos investigatórios complementares para podermos tomar posição definitiva e adotar as providências que entendermos cabíveis, não estando descartada uma ação judicial de responsabilização da empresa, caso não exista disposição de firmar um acordo.”
Apesar de reconhecer ter sido beneficiada, inclusive, financeiramente com um regime que controlava os trabalhadores e o sindicato, a Volks descarta pagar indenizações individuais e se limita a financiar instituições que defendem os direitos humanos. “Não tem evidência institucionalizada da empresa com regime militar. Por enquanto vamos trabalhar com instituições de direitos civis e direitos humanos. Não estamos planejando por enquanto (indenizações)”, sentenciou o presidente e CEO da companhia na América Latina e Brasil, Pablo Di Si.
Fonte: Diário do Grande ABC, 24/12/2017
Disponível: http://www.dgabc.com.br/Noticia/2813577/fui-preso-e-torturado-dentro-do-departamento-pessoal-da-volkswagen
Redes Sociais