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"Itamaraty tinha rede clandestina de espionagem e perseguia adversários no exterior"

  • Publicado: Sexta, 15 de Dezembro de 2017, 15h11
  • Última atualização em Sexta, 15 de Dezembro de 2017, 15h12

Livro investiga morte de diplomata brasileiro em Haia em 1970 e revela como ditadura usou ministério das Relações Exteriores para vigiar exilados e fazer contrapropaganda do regime militar

 

Eumano Silva, autor do livro "A morte do diplomata: um mistério arquivado pela ditadura". Jornalista vasculhou arquivos oficiais secretos e revela o aparato de perseguição a exilados

Eumano Silva, autor do livro "A morte do diplomata: um mistério arquivado pela ditadura". Jornalista vasculhou arquivos oficiais secretos e revela o aparato de perseguição a exilados

Mistérios e segredos sombrios da ditadura militar brasileira (1964-1985) persistem nas gavetas da História, mas o jornalista Eumano Silva revirou arquivos secretos do Itamaraty e foi parar até na Holanda para revelar como o aparelho de repressão do regime militar agia no exterior.

No livro “A morte do diplomata: um mistério arquivado pela ditadura”, o autor investiga a morte do jovem diplomata Paulo Dionísio de Vasconcelos em Haia e apresenta, pela primeira vez, uma série de documentos sigilosos que provam o uso do ministério das Relações Exteriores para fazer contrapropaganda lá fora. O extenso trabalho de pesquisa evidencia a atuação de embaixadores para negar violações de direitos humanos, exaltar o Brasil dos ditadores e perseguir e vigiar exilados políticos. Confira a entrevista:

Um jovem diplomata com carreira promissora, com uma filha e a mulher grávida, aparece morto em circunstâncias estranhas dentro de um carro diplomático, fato que atrai a atenção do mundo para a embaixada brasileira em Haia. Por que aquilo era tudo que não queria a ditadura militar?

A morte de Paulo Dionísio de Vasconcelos, personagem central do livro, aumentou a tensão no meio diplomático e na área militar. Poucos dias antes, o cônsul do Brasil em Montevidéu, Aloysio Gomide, foi sequestrado por guerrilheiros tupamaros. Fatos como estes dificultavam a estabilidade do governo e prejudicavam a imagem da ditadura brasileira fora do país. Deve-se destacar que o mundo vivia o tempo da Guerra Fria e, em muitos países, diplomatas foram sequestrados e, em alguns casos, mortos por grupos radicais.

Por que a história de Paulo Dionísio te despertou tanta atenção? Você mesmo relata que a embaixada de Londres e os adidos militares especializados em questões de informação sentaram em cima desse mistério, mesmo tendo condições de apurar. 

Primeiro, fui atraído pelo mistério em torno de um caso pouco conhecido do tempo da ditadura. Um drama familiar em torno de uma tragédia, abafado pela burocracia estatal. Como se trata de um fato ambientado no Itamaraty, avaliei que seria uma oportunidade para aprofundar as pesquisas sobre a diplomacia brasileira durante os Anos de Chumbo. A sociedade sabe pouco dos bastidores da atuação de diplomatas e militares nas Relações Exteriores naquele período, sobretudo nas embaixadas.

O livro apresenta, pela primeira vez, uma série de documentos sigilosos do Itamaraty que provam o uso do ministério para fazer contrapropaganda lá fora, para exaltar o Brasil dos ditadores e para perseguir e vigiar exilados políticos. Como funcionava essa estrutura? O que de pior ela produziu?

Os diplomatas eram orientados a agir em favor da ditadura, exposta pela imprensa internacional pela prática de mortes e torturas contra opositores. Recebiam ordens para rebater as denúncias e fazer gestões junto aos governos estrangeiros. Os que se opunham a essas orientações sofriam punições internas e podiam até ser expulsos do Itamaraty
Eumano Silva, jornalista

Talvez o uso de servidores do Estado brasileiro na perseguição aos exilados seja o aspecto mais chocante. Os diplomatas eram orientados a agir em favor da ditadura, exposta pela imprensa internacional pela prática de mortes e torturas contra opositores. Recebiam ordens para rebater as denúncias e fazer gestões junto aos governos estrangeiros. Os que se opunham a essas orientações sofriam punições internas e podiam até ser expulsos do Itamaraty.

O Itamaraty vivia a lógica da Guerra Fria e da caça ao “inimigo interno”. Era o auge da repressão nos anos de chumbo naquele 1970, ano de pleno “milagre econômico” brasileiro. O que era o Ciex e como se articulavam os serviços secretos para fazer a propaganda da ditadura?

O Centro de Informações do Exterior (Ciex) atuou de forma clandestina dentro do Itamaraty durante a ditadura. A existência dessa rede de espionagem só foi comprovada há dez anos por uma série de reportagens do jornal Correio Braziliense. Essa estrutura era parte da poderosa Comunidade de Informações montada pelos governos militares para monitorar e perseguir os adversários.

Naquela época, início dos anos 1970, o clima das embaixadas brasileiras no mundo era de ameaças de bomba, com protestos de sindicalistas, além de intelectuais estrangeiros alinhados a militantes banidos pelas ditaduras latinas. A ditadura brasileira era condenada pela opinião pública internacional. Como funcionava a estrutura de espionagem e como o AI-5 ajudou a cooptou diplomatas a colaborarem com o regime?

Embora a estrutura de espionagem dentro do Itamaraty tenha funcionado sob extremo sigilo, reportagens publicadas na última década comprovaram a existência de uma sofisticada rede de perseguição aos adversários incrustada na diplomacia brasileira. Os mecanismos internos de pressão e punição determinavam, ou pelo menos influíam muito, no comportamento dos servidores.

Documentos do governo autoritário contidos no livro revelam uma parte da História do Brasil totalmente desconhecida. É mais um sinal de que a burocracia federal ainda resiste muito a abrir as feridas da repressão, talvez mal curadas com a Lei de Anistia?

Ainda há muito a ser descoberto sobre o que se passou durante a ditadura. A repressão e a censura esconderam fatos relevantes que, aos poucos, são revelados. Apesar dos esforços feitos pelos agentes da ditadura para deixar parte da história na sombra, a burocracia produziu muitos documentos, hoje acessíveis, que ajudam bastante na reconstituição de pelo menos parte do que se passou no Brasil naquela época.

Como você chegou a esses elementos históricos? Foi quando atuava na Comissão Nacional da Verdade?

A pesquisa histórica foi feita na fase de apuração do livro, depois da consultoria na Comissão Nacional da Verdade. Os fatos foram reconstituídos, principalmente, a partir de documentos arquivados pelo Ministério das Relações Exteriores. Também recorri ao material publicado, na época, pelas imprensas brasileira e estrangeira e, ainda, ao arquivo da família de Paulo Dionísio. Para a construção do livro, também acho interessante que a história tenha como cenários cidades tão diferentes quanto Haia, na Holanda, São Domingos do Prata (MG) e Brasília. Por fim, acredito que a opção por contar a história como um livro policial tenha criado um desafio jornalístico a mais.

Testemunhas viram um homem ao lado do carro e também sentado na direção do carro pertencente ao corpo diplomático, antes de Paulo Dionísio ser encontrado caído, ensanguentado, com ferimentos no pulso e no pescoço, morto dentro do veículo. A ditadura tinha motivos para eliminar Paulo Dionísio? Ele, ao que se sabe, era um simples chefe do setor de promoção comercial.

Esses são alguns dos mistérios em torno dos quais a narrativa do livro foi construída. Tentei levar os leitores todas as informações que obtive na busca de explicações para o caso. Espero que eles próprios se sintam como se estivessem na investigação policial e na apuração jornalística dessa história. Podem também, claro, tirar suas próprias conclusões. Em alguns pontos, como os fatos ocorridos em Londres, os leitores podem ir além e, quem sabe, descobrir novidades sobre um episódio abafado em 1970 e, agora, revelado em parte pelo livro.

Apenas um dia depois do óbito, a polícia holandesa conclui por suicídio e excluiu as hipóteses de atentado e de motivação política, e nem comunicou a embaixada. Mais de 30 testemunhas ligaram em seguida. Um inspetor acha uma lâmina de barbear na poça de sangue no carro, objeto que os peritos não enxergaram horas antes. A lâmina seria a prova do suicídio anunciada depois... Estranho, não?

Reportagens comprovaram a existência de uma sofisticada rede de perseguição aos adversários incrustada na diplomacia brasileira. Os mecanismos internos de pressão e punição determinavam, ou pelo menos influíam muito, no comportamento dos servidores
Eumano Silva, jornalista

Esses são alguns dos mistérios que me levaram a escrever o livro. O caso tem muitos elementos que provocam a curiosidade das pessoas. Principalmente de um jornalista.

Após a morte de Paulo Dionísio, surgem na mesa do embaixador do Brasil em Haia cartas enviadas por um a escritório de advocacia de Londres. Nelas há acusações de extorsão, crimes e chantagem atribuídos a Paulo Dionísio. Chegam sete cartas nos meses seguintes. Por que ninguém descobriu nada? Por que todas as investidas no Brasil e na Europa esbarraram em “caso encerrado”?

Acredito que a atuação, principalmente dos embaixadores envolvidos no caso, deve ser observada no contexto de um governo ditatorial, com censura e controle das instituições. Isso explica a facilidade de se encerrar uma investigação e abafar um escândalo policial.

A família até hoje busca uma explicação para a morte de Paulo Dionísio. Mulher e filhas vivem sem saber se essas cartas eram verdadeiras ou forjadas. Um irmão e diplomatas contestam a versão de suicídio. Apesar de opiniões críticas à ditadura, nenhum dado ou documento citado no livro aponta para militância política clandestina ou morte executada pelo aparelho da ditadura.

Apresentei os elementos disponíveis a partir da apuração jornalística. O pensamento político de Paulo Dionísio, acredito, está documentado no diário que ele deixou.

Quem era o embaixador Correia da Costa? O livro diz que ele usava relações informais com a cúpula da Scotland Yard para vigiar exilados, e que não agiu para identificar a autoria das cartas de Londres que atormentavam Paulo Dionísio.

A morte de Paulo Dionísio de Vasconcelos, personagem central do livro, aumentou a tensão no meio diplomático e na área militar. Poucos dias antes, o cônsul do Brasil em Montevidéu, Aloysio Gomide, foi sequestrado por guerrilheiros tupamaros. Fatos como estes dificultavam a estabilidade do governo
Eumano Silva, jornalista

Em 1970, Sergio Corrêa da Costa era embaixador do Brasil em Londres. Embaixador experiente, tinha o diferencial de ser genro do ex-chanceler Osvaldo Aranha, personagem importante na história da diplomacia brasileira. O livro mostra que, na Inglaterra, Corrêa da Costa atuou com intensidade em favor do governo militar na vigilância dos exilados.

Havia embaixadores engajados, e outros que defendiam abertamente a ditadura. Miguel Darcy, da embaixada de Genebra, divulgava relatórios de tortura na ONU. Foi preso. Como se dava essa luta interna dentro do corpo diplomático?

O comportamento dos diplomatas em relação às diretrizes do regime autoritário dependia, em grande parte, da personalidade e da formação de cada um. A adesão ou a resistência, muitas vezes calada, também variava em função das circunstâncias a que eram submetidos. Paulo Dionísio, por exemplo, contestava as ordens que recebia para acompanhar os movimentos na Europa do então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara.

O livro gerou reações ou incômodos? Alguma informação nova surgiu?

Não sei de incômodos. Acho que ainda podem vir novas informações.

Você fez parte da Comissão Nacional da verdade como observador da UNESCO. A Comissão foi limitada, apesar de responsabilizar a ditadura pela morte ou desaparecimento de 434 vítimas e extermínio de oito mil índios? O país vai rever a lei de Anistia e punir os criminosos do regime militar que mataram e torturaram, como fizeram outros países do Cone Sul?

A redemocratização no Brasil foi negociada com os militares e protegeu os crimes cometidos contra os adversários da ditadura. Na Assembleia Nacional Constituinte, os setores comprometidos com o esclarecimento e com a responsabilização por crimes como tortura, morte e desaparecimento de militantes políticos foram minoritários e não conseguiram aprovar cláusulas que levassem à punição dos agentes da repressão. Enquanto os países vizinhos avançam nessa direção, o Brasil perde tempo na tarefa de passar a limpo o passado sombrio.

Fonte: Gazeta Online, 15/12/2017

Disponível: https://www.gazetaonline.com.br/noticias/politica/2017/11/itamaraty-tinha-rede-clandestina-de-espionagem-e-perseguia-adversarios-no-exterior-1014109418.html

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