Luís Eduardo Gomes
A Corte Penal de Roma retomou nesta quarta-feira (29) o julgamento de três militares brasileiros, que atuavam no Rio Grande do Sul, acusados de envolvimento no desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas, que desapareceu em 1980 na cidade de Uruguaiana (RS) e presumidamente foi morto pela ditadura militar argentina. O caso está sendo julgado dentro de uma série de processos abertos na Justiça italiana para julgar casos de pessoas com nacionalidade italiana vítimas de crimes no âmbito da Operação Condor, uma aliança das ditaduras da América do Sul com os Estados Unidos para criar um aparelho de repressão contra dissidentes.
Os três militares gaúchos que estão sendo julgados são os coronéis João Osvaldo Job, Carlos Alberto Ponzi e Átila Rohrsetzer – os dois primeiros moram em Porto Alegre, o último em Florianópolis. Eles ocupavam postos de comando na Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul e nos órgãos de repressão federal (DOI e SNI), responsáveis por entregar Lorenzo a autoridades argentinas. Como não compareceram ao julgamento, estão sendo julgados à revelia, o que é permitido pela Justiça italiana.
Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que testemunhou nesta quarta-feira em Roma, conta que o julgamento é o resultado de uma denúncia que fez ao Ministério Pública da Itália em dezembro de 1999, uma vez que Lorenzo era ítalo-argentino, seus algozes poderiam ser julgados no país europeu. “Denunciar no Brasil é perda de tempo, porque ninguém foi punido. A justiça brasileira entende que a anistia cobriu esse crime, mesmo ele tendo sido cometido em junho de 1980, depois da promulgação da lei (de 1979)”, diz Krischke. Originalmente, 13 pessoas foram denunciadas por Krischke por envolvimento na Operação Condor e no desaparecimento de Lorenzo, mas 10 já faleceram.
De acordo com o brasileiro, os militares podem ser condenados à prisão perpétua. No ano passado, três generais peruanos e dois bolivianos foram condenados pela corte de Roma por crimes cometidos contra cidadãos com nacionalidade italiana durante ditaduras na América do Sul.
A vítima
Lorenzo Ismael Viñas era militante do Montoneros, uma organização político-militar argentina e guerrilha urbana de esquerda contrária à ditadura militar do país. Segundo Krischke, a organização praticava sequestros em troca de resgates que ajudavam a financiar a luta armada. “O Lorenzo era um jovem estudante de Medicina. Sua companheira, Cláudia Allegrini, tinha dado à luz fazia 29 dias e eles perceberam que o aparelho repressivo argentino estava muito próximo deles, que ia acabar os capturando. Como a mãe de Lorenzo era italiana e vivia na Itália, ele decidiu tentar a vida com a mãe”, conta Krischke.
Com pouco dinheiro disponível, o casal decidiu que Cláudia, por estar no pós-parto, iria de avião para o Rio de Janeiro, de onde sairiam para a Itália, e Lorenzo iria de ônibus. Em 26 de junho de 1980, Ele partiu de Santa Fé, na Argentina, em um ônibus da empresa brasileira Pluma, com destino ao Rio de Janeiro. Cláudia ficou na Argentina aguardando uma mensagem que o marido deveria mandar do Rio para embarcar. Mas a resposta nunca chegou, diz Krischke. Quando percebeu que algo errado tinha acontecido, Cláudia iniciou uma investigação pessoal. “Deixa a criança com os pais e vem para o Brasil. Vai a Curitiba, sede da empresa Pluma, fala com o motorista que conta que Lorenzo foi retirado e que não sabia dizer mais nada”.
Posteriormente, descobriu-se que Lorenzo viajava com uma identidade falsa e que estava na poltrona 11. Krischke diz que, no mesmo dia, um padre argentino que vinha na poltrona 11 de um ônibus argentino, também foi detido em Uruguaiana, o que o leva a crer que os dois vinham sendo monitorados e colocados em poltronas de mesmo número pelas autoridades repressivas para que não houvesse erro na operação.
Segundo Krischke, a última pessoa que viu Lorenzo com vida foi Silvia Tolchinsky, uma ex-militante montonera que também havia sido presa, torturada e transformada em “marcadora” pelo aparelho repressivo argentino, isto é, obrigada a identificar os ex-companheiros. À época, os montoneros tinham o costume de falsificar documentos de identidade e andar disfarçados. Silvia conversou com Lorenzo no Campo de Mayo, área de Buenos Aires para onde eram levados os presos políticos. Segundo Krischke, Silvia conta que Lorenzo a confidenciou que, naquele dia, deveria ser colocado num avião e jogado no mar – prática utilizada pela ditadura argentina para eliminar presos políticos sem deixar rastros -, mas isso não aconteceu porque o tempo ruim impediu o avião de decolar. Ninguém soube se Lorenzo embarcou num avião desses no dia seguinte ou nos próximos.
Como era judia, Silvia recebeu apoio do governo israelense, que intercedeu pela sua liberdade, e conseguiu migrar para Israel. Posteriormente, casou com o seu torturador Claudio Gustavo Scagliussi, um civil filho de general argentino, que foi atrás dela em Israel. Hoje, os dois moram em Barcelona, na Espanha. “É a tal síndrome de Estocolmo clássica”, comenta Krischke.
O julgamento
Krischke explica que o julgamento começou em junho com o depoimento de um historiadora italiana, que calcou seu depoimento em uma descrição geográfica da fronteira entre Brasil e Argentina, e de uma arquivista italiana, que falou sobre a dificuldade de acesso aos documentos militares de Brasil e Argentina, ainda mantidos em sigilos. O depoimento de Jair é o terceiro. “No meu depoimento, eu chamei a atenção de que ninguém escrevia sobre muitas das ações, justamente para não deixar vestígios. Costumo dizer que o aparelho brasileiro sempre foi muito cuidadoso, procurando não deixar impressões digitais”, afirma.
Ele diz que também tentou demonstrar, através da apresentação de documentação história, como funcionava o aparelho repressivo brasileiro e dos demais países que compunham a Operação Condor – Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia, em parceria com os serviços secretos dos Estados Unidos. Ele explica ter detalhado que a ditadura brasileira já praticava sequestros além de suas fronteiras desde 1970, quando o militar brasileiro Jefferson Cardim De Alencar Osório foi sequestrado em Montevidéu (Uruguai) junto com o filho e um sobrinho. De acordo com ele, há uma grande dificuldade de acessar informações sobre o caso, justamente porque os arquivos das ditaduras brasileira e argentina ainda não são abertos. Contudo, apresentou em seu testemunho uma cópia do Diário Oficial da União de 22 de agosto de 2005, que reconheceu o direito a reparação e indenização à família de Lorenzo, que recebeu na época R$ 105 mil. “Então, se o Brasil repara, reconhece também a sua responsabilidade sobre o fato”, diz Krischke.
O julgamento dos militares deverá continuar apenas em março, uma vez que a Justiça italiana entrará em recesso em dezembro. Krischke diz que novas testemunhas deverão ser convocadas pela Promotoria italiana, incluindo Silvia e o marido. A viúva Cláudia Allegrini também estava prevista para depor nesta quarta-feira, mas Krischke disse que o depoimento não ocorreu.
Editoria: Geral, z_Areazero
Fonte: Sul21, 30/11/2017
Disponível: https://www.sul21.com.br/jornal/militares-gauchos-sao-julgados-na-italia-por-desaparecimento-durante-ditadura/
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