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Na ditadura, empreiteiras ‘deitaram e rolaram’ com recursos públicos, diz historiador

  • Publicado: Segunda, 27 de Novembro de 2017, 15h42
  • Última atualização em Segunda, 27 de Novembro de 2017, 15h44
Pedro Henrique Campos: “Na ditadura, tivemos um cenário ideal para práticas ilegais”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

Marco Weissheimer

Os grupos que saem às ruas, hoje, vestidos de verde e amarelo, pedindo uma nova intervenção militar no Brasil, afirmam, entre outras coisas, que na época da ditadura não havia corrupção, desvio de recursos públicos e práticas desse tipo. Essa tese é desmontada pelo historiador Pedro Henrique Campos, professor do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em seu livro “Estranhas Catedrais: As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964, 1988” (Eduff), resultado da tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2012. Em sua pesquisa, o historiador mostra como o poder de algumas empresas de engenharia cresceu durante a ditadura em um ambiente sem liberdade de imprensa, sem órgãos de controle e fiscalização e sem participação da sociedade sobre as decisões do Estado.

Em entrevista ao Sul21, Pedro Henrique Campos fala sobre a sua pesquisa que expõe as fragilidades da tese acerca da existência de um suposto paraíso ético que no período da ditadura civil militar. “O que eu verifiquei na minha pesquisa é justamente o oposto a essa ideia de que, na ditadura, não houve corrupção ou houve menos corrupção. Na ditadura, tivemos um cenário ideal para práticas ilegais e para essas grandes empreiteiras deitarem e rolarem com recursos públicos”, diz o historiador que esteve em Porto Alegre na semana passada, participando de um debate sobre os empresários e a face civil da ditadura, promovido pelo Laboratório de Estudos Sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA).

Sul21: Como nasceu a ideia dessa pesquisa sobre a relação das empreiteiras com a ditadura implantada no Brasil a partir do golpe de 1964?

Pedro Henrique Campos: O livro “Estranhas Catedrais”, publicado em 2014, é resultado da minha tese de doutorado em História, que defendi na Universidade Federal Fluminense em 2012. Eu fui pesquisar as empreiteiras durante a ditadura partindo de questões presentes. Nos idos de 2006, 2007 eu fazia mestrado em História, também na UFF, e me chamava muito a atenção o poder, a projeção política e econômica que alguns empresários tinham naquele momento. Eu queria entender as raízes históricas de tamanha força. Instigava-me, em particular, o poder dos empreiteiros de obras públicas. Formulei, então, uma hipótese muito geral de que talvez a ditadura pudesse me dar a chave para entender porque esses empreiteiros se tornaram tão poderosos na cena pública e na própria dinâmica econômica do Brasil.

“A maioria dessas empreiteiras, como o próprio nome delas indica, são controladas por famílias”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

Eu tinha em mente aquelas grandes obras realizadas no período da ditadura, que o Chico Buarque chamou de “estranhas catedrais”: ponte Rio-Niterói, Transamazônica, Itaipu, usina nuclear de Angra dos Reis e tantas outras obras monumentais que acabaram como emblemas do regime.

Sul21: Quando nascem essas grandes empreiteiras?

Pedro Henrique Campos: Em geral, elas foram fundadas em um período anterior ao da ditadura. A maior parte dessas empreiteiras foi fundada nas décadas de 30 e 40. O nascimento e a formação dessas empresas decorrem muito de uma mudança fundamental no eixo de acumulação da economia capitalista brasileira entre os anos 20 e 40. Ela saiu de um setor mais rural e se deslocou para o setor urbano. Passamos a ter uma ênfase da acumulação de capital no eixo urbano industrial, o que criou toda uma demanda em termos de empreendimentos em infraestrutura, principalmente nos setores de transporte e energia. Neste período foram fundadas empresas que acabaram sendo contratadas pelo aparelho de Estado para fazer várias obras de infraestrutura no território brasileiro.

É interessante notar que essas companhias têm alguns traços comuns de origem. Em primeiro lugar, como o nome delas denota – Queiroz Galvão, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Odebrecht, Maestri, Toniollo Busnelo e várias outras – , são empresas controladas por famílias, geralmente de engenheiros. Além de terem controle familiar, o que se mantém até hoje, são empresas que nascem com vínculos e inserção política junto a segmentos da classe dominante local e regional. A Camargo Correa, por exemplo, foi fundada por dois sócios, em 1938, em São Paulo. O primeiro deles, que depois assumiu o controle da empresa, é Sebastião Camargo. O outro é o advogado Sylvio Correa que, na época de fundação da empresa, era cunhado do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros.

Isso, obviamente, facilita o acesso da empresa às agências estatais contratantes de obras públicas do Estado de São Paulo. A empresa terá uma ascensão meteórica entre o final dos anos 30 e o início da década de 40. Podemos citar vários outros exemplos, como o da vinculação das famílias Andrade e Gutierrez com Juscelino Kubitschek. Há outro caso emblemático que é o da OAS, fundada em Salvador em 1975, tendo como um dos sócios César Mata Pires, genro de Antônio Carlos Magalhães, uma figura extremamente poderosa durante a ditadura e, na época, presidente da Eletrobras. É outra empresa que teve uma ascensão bastante acentuada no seu início, crescendo sob o cuidado de figuras ligadas ao carlismo na Bahia.

Sul21A maioria dessas empreiteiras, portanto, já tinha poder e relações com o aparato estatal antes da ditadura. Qual foi a particularidade da relação que se estabeleceu com os militares a partir de 1964?

“Os empreiteiros financiaram e se envolveram diretamente na derrubada da democracia”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

 Pedro Henrique Campos: Essas empresas nasceram com um perfil local e regional. A administração JK, na segunda metade da década de 50, é um momento muito importante para entender a ascensão política e econômica delas. Neste período, tivemos uma emergência muito significativa dessas empresas e o surgimento de um mercado nacional de obras públicas. Com isso, elas passaram a se organizar em nível nacional, por meio de associações e sindicatos que servem para diversas finalidades, seja para atuar coletivamente junto aos trabalhadores, seja para distribuir obras entre as empresas. Há vários indícios que caracterizam esses organismos como carteis. Além disso, usam essa organização coletiva para pautar políticas públicas, definir a agenda do Estado e também para organizá-los politicamente.

Há vários documentos que apontam que esse sindicato teve uma participação expressiva no golpe de 1964. Os empreiteiros participaram, financiaram e se envolveram diretamente, por meio de suas associações, na derrubada da democracia. Ao longo da ditadura, eles foram amplamente favorecidos por políticas benéficas à sua atuação. Eles tiveram isenções fiscais, financiamentos facilitados e medidas específicas que os favoreceram. Em 1969, com o Congresso Nacional fechado, depois do AI-5, Costa e Silva editou um decreto-lei proibindo empresas estrangeiras de serem contratadas por órgãos públicos no país. Essa medida pode parecer nacionalista, mas, na verdade, era um pleito dos empreiteiros que não queriam a concorrência de empresas estrangeiras. Por meio dela, esses empresários participaram do maior boom de obras da história do país, durante a época do chamado milagre econômico, na década de 70. Essa medida só vai cair no governo Collor.

Além disso, a ditadura, ao cercear as formas de organização dos trabalhadores, vai dificultar os pleitos das classes populares por melhor saúde, educação e políticas sociais. A ditadura desobrigou os mínimos constitucionais em saúde e educação. O orçamento, ano a ano, foi sendo drenado para gastos em projetos de infraestrutura considerados estratégicos pelos militares. Tivemos, neste período, um crescimento avassalador das verbas destinadas à construção de rodovias, hidroelétricas e outras obras do gênero. Na época, a população não era convidada a escolher o que era prioridade nacional.

Sul21: Esse é, basicamente, o período do chamado “milagre econômico”…

“O poder desses empresários alcançou um nível muito elevado durante a ditadura e não se decompôs com a transição do regime”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

 Pedro Henrique Campos: Sim. Que forças levaram, por exemplo, a definição da Transamazônica como uma prioridade nacional, durante o governo Médici? O que verificamos neste período é um favorecimento impressionante dessas empresas. Se muitas empreiteiras já eram poderosas antes do golpe, elas chegam ao fim da ditadura como conglomerados – alguns deles multinacionais – com ramificações em diversos setores da economia. Elas se tornaram tão poderosas em termos econômicos e políticos que, juntamente com empresas de outros setores, vão influenciar as linhas e o processo de transição política no Brasil. Essa transição não afetou o poder desses grupos que se adequaram aos novos mecanismos institucionais, políticos e legais e passaram a ter uma atuação muito intensa junto à imprensa e ao Parlamento, financiando campanhas e lobbies. Adib Jatene, ministro da Saúde, no início da década de 1990, chegou a dizer que, quem definia de fato o orçamento da República, eram os empreiteiros, por meio de emendas parlamentares inscritas na lei orgânica do orçamento.

O poder desses empresários, portanto, alcançou um nível muito elevado durante a ditadura e não se decompôs com a transição do regime. De certa forma, alguns dos problemas que marcam nosso regime político hoje decorrem do poder que alguns empresários conquistaram na ditadura e mantiveram após o fim dela.

Sul21: Em sua pesquisa, você chegou a identificar práticas como pagamento de propinas, superfaturamentos ou outras irregularidades nessa relação entre empreiteiras e o Estado, durante a ditadura?

Pedro Henrique Campos: Sim, cheguei a tocar neste ponto. Esses empresários, não somente se beneficiaram como apoiaram abertamente o regime. Na década de 70, era muito comum as peças de propaganda dessas empresas fazerem referência a símbolos e slogans da ditadura, como “Ame-o ou deixe-o”. Além disso, esses empresários apoiaram as iniciativas mais nefastas da ditadura. A Operação Bandeirantes, responsável pela repressão aos integrantes da resistência armada ao regime, teve apoio e financiamento de vários empresários, entre eles empreiteiros de obras públicas. Sebastião Camargo, que era dono da Camargo Correa, chegou a ser alvo da guerrilha armada por conta do amplo apoio que ele dava à Operação Bandeirantes.

Sul21: Há documentos sobre isso?

Pedro Henrique Campos: Sim. Isso consta, inclusive, de uma pesquisa feita por Jorge de Melo que aparece no filme “Cidadão Boilesen”. Henning Boilesen, Pery Igel e Sebastião Camargo eram os três alvos principais da resistência armada por conta do suporte que davam à Operação Bandeirantes. Durante a ditadura, não tivemos muita divulgação sobre casos de ilegalidades envolvendo empresas de engenharia. Isso não implica, porém, que naquela época houvesse menos corrupção, desvio de verbas e uso ilegal de recursos públicos neste segmento. Pelo contrário, tudo aponta na direção contrária uma vez que, naquela época, os mecanismos de fiscalização estavam amordaçados, a imprensa estava sob censura e os movimentos sociais eram perseguidos e fechados pela ditadura. A Polícia Federal também era amplamente controlada pelas forças militares.

Para além da ilegalidade envolvendo casos de corrupção, há outra questão envolvida. Os recursos públicos, de forma legal, muitas vezes eram gastos em prioridades que não eram demandadas democraticamente pela população. Foram desenvolvidos o que podemos chamar de mecanismos legais de corrupção que permitiam a esses empresários pautar políticas públicas, demandando e criando necessidades de investimentos em infraestrutura que eram colocados na frente de outras prioridades de maior urgência social nas áreas da saúde, educação e assistência social.

“A corrupção é uma poderosa arma para ataques entre grupos políticos e entre empresas”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

É interessante notar que eles tinham uma atuação muito grande junto à imprensa também. Chegaram a comprar jornais durante a ditadura e a controlar alguns dos maiores jornais do país. Última Hora, Correio da Manhã e a revista Visão eram grupos de comunicação controlados por empreiteiros. Por meio destes veículos e em matérias publicadas em outros espaços, eles falavam da necessidade do país resolver gargalos de infraestrutura, difundindo demandas para a sociedade que, na verdade, eram interesses particulares.

Sul21: As grandes obras da ditadura, como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói, costumam ser associadas a um viés nacionalista dos militares que teriam um projeto de nação, ao qual essas grandes empreiteiras estariam associadas. Hoje, com a Operação Lava Jato, esse setor empresarial está sendo fortemente atingido. Em que medida, a Lava Jato rompe com o papel que essas empreiteiras desempenharam nas últimas décadas?

Pedro Henrique Campos: Esse tema é bem complexo. A ditadura, em certos momentos, advoga uma posição nacionalista, mas encontramos várias lacunas em relação a isso. A ditadura apoiou certo capital nacional em certos segmentos. Os banqueiros, empreiteiros e alguns empresários de bens de produção foram beneficiados, mas outros foram sacrificados. Além disso, a ditadura beneficiou muito certo capital internacional.

De fato, essas grandes empreiteiras, até a Lava Jato, constituíam verdadeiros oligopólios no setor de obras públicas do país, com o primeiro time formado por Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez, e o segundo por Queiroz Galvão e OAS. Por mais que essas empresas tenham entrado no mercado de ações e feito parcerias com outros grupos nacionais e estrangeiros, o controle delas permaneceu sob capital nacional. Até hoje não tenho muita clareza sobre o que a Lava Jato constitui exatamente. Por um lado, ela decorre de um certo aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização e de lutas políticas no cenário público brasileiro a partir das eleições de 2014.

Livros de Pedro Henrique Campos investigam papel dos grandes empresários na vida política brasileira. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 

A corrupção é uma poderosa arma para ataques entre grupos políticos e entre empresas. Na minha pesquisa esse fenômeno apareceu bastante: os chamados escândalos de corrupção sendo alimentados pela concorrência entre grupos. Houve um caso de corrupção que foi apontado no finalzinho da ditadura envolvendo a Camargo Correa e Delfim Neto. As acusações eram de pagamento de propina, licitações pré-combinadas e coisas deste tipo. A Odebrecht ficou bancando as pessoas que fizeram delação contra a Camargo Correa. As disputas entre as empresas alimentam, me parece, inclusive a pauta jornalística sobre os escândalos de corrupção. A Lava Jato também parece ser isso, uma grande disputa que parece não se restringir somente a grupos domésticos. Há grupos estrangeiros interessados nos desdobramentos da Lava Jato, tendo em vista o que está em jogo como, por exemplo, o petróleo brasileiro e o segmento de obras públicas no país. Sem querer defender esses grandes grupos brasileiros, é preciso assinalar que eles estão presentes no processo de integração da América do Sul, estão presentes na África e no Caribe.

Sul21: Como foi o caso do porto em Cuba…

Pedro Henrique Campos: Sim, no porto de Mariel, assim como nos projetos de modernização do aeroporto de Havana e de desenvolvimento de um sistema de etanol em Cuba. Todos esses projetos foram tocados pela Odebrecht. Pode parecer contraditório, mas o país onde consegui identificar o maior número de contratos dessas empreiteiras, particularmente da Odebrecht, que é a maior multinacional brasileira de engenharia, são os Estados Unidos. A impressão que dá é que ela chegou em um certo patamar que começou a incomodar. Particularmente, me parece que o que mais incomodou foi o poder e ascendência que algumas dessas empresas tinham dentro da Petrobras em decisões como política de conteúdo nacional e operação exclusiva do pré-sal, entre outras tomadas no período mais recente. Posso estar enganado, mas a impressão que fica é que isso contrariou bastante certos setores que estavam interessados no aprofundamento da Lava Jato.

Não estou dizendo que ela está sendo conduzida de fora ou algo deste tipo, mas parece que, no mínimo, ela foi alimentada por informações obtidas em fontes de investigação não brasileiras. Essa impressão fica reforçada quando olhamos para os desdobramentos pós-Lava Jato: fim da política de conteúdo nacional, abertura da exploração do pré-sal brasileiro para empresas estrangeiras e o que está sendo feito hoje com a Petrobras. Um professor me ensinou que um pesquisador sempre tem que fazer aquela pergunta que Sherlock Holmes fazia quando via um cenário crime: a quem interessa o crime? A quem interessa os desdobramentos da Operação Lava Jato que estamos vendo hoje? Parece que há um conflito capitalista de ordem internacional motivado pela projeção que certos grupos brasileiros de engenharia conquistaram.

Sul21: Nos últimos meses, ganharam certo destaque midiático manifestações de grupos pedindo a volta dos militares e mesmo da ditadura. Um dos argumentos centrais desses grupos consiste em afirmar que na época da ditadura e dos militares não havia corrupção. Qual sua opinião sobre isso?

Pedro Henrique Campos: O que eu verifiquei na minha pesquisa é justamente o oposto a essa ideia de que, na ditadura, não houve corrupção ou houve menos corrupção. Na ditadura, tivemos um cenário ideal para práticas ilegais e para essas grandes empreiteiras deitarem e rolarem com recursos públicos. Eles enriqueceram muito. Estavam dadas as condições perfeitas para eles se apropriarem de recursos públicos de maneira flagrante e sem nenhuma forma de controle e fiscalização. No regime democrático, nós temos conquistas que são mecanismos que podem delimitar o poder desses grupos. Já na ditadura, tivemos um ambiente que propiciava práticas ilegais e a apropriação de fundos públicos por esses grupos.

Fonte: Sul 21, 27/11/2017

Disponível: https://www.sul21.com.br/jornal/na-ditadura-empreiteiras-deitaram-e-rolaram-com-recursos-publicos-diz-historiador/

 

 
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