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José Renato Santiago: Nando, irmão de Zico, o primeiro jogador de futebol anistiado

  • Publicado: Terça, 24 de Outubro de 2017, 12h26
  • Última atualização em Terça, 24 de Outubro de 2017, 12h28

A seleção e o treinamento dos profissionais deste programa aconteceram entre o final de 1963 e os primeiros meses de 1964
REDAÇÃO - Campinas Publicado em 23/10/2017 12:40
por REDAÇÃO - Campinas

O decreto nº 53.465, de 21 de janeiro de 1964, assinado pelo presidente João Goulart, instituiu oficialmente o Programa Nacional de Alfabetização, PNA. Mediante o uso do Sistema Paulo Freire, método para alfabetização de adulto desenvolvido pelo educador pernambucano, o Ministério da Educação e Cultura tinha como grande objetivo concentrar esforços em prol da erradicação do analfabetismo no país. A seleção e o treinamento dos profissionais deste programa aconteceram entre o final de 1963 e os primeiros meses de 1964. Alguns dos aprovados eram oriundos da faculdade de filosofia da Universidade do Brasil, como era chamada na época, a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro a UFRJ.

As primas Cecília Coimbra e Maria José Antunes Coimbra, a Zezé, que convidara seu irmão, Fernando, o Nando, que dividia seu tempo de estudo com a prática do futebol, passaram três meses em treinamento para ministrarem as aulas que aconteceriam em colégios públicos do Rio de Janeiro. Além do amor pelos estudos, o futebol era outra paixão daquela família de origem portuguesa, que já contava, com o próprio Nando, atuando nas categorias de base do Fluminense, e seus irmãos, Antunes, também no tricolor carioca, e Edu, no América. O irmão mais novo, que ainda sequer tinha 10 anos, se chamava Arthur, costumava ser chamado por Arthurzinho. Com o tempo virou Arthurzico e posteriormente, Zico, que viria a ser o maior jogador da história do Flamengo.

 

Família Coimbra completa: os pais, José Antunes e dona Matilde, e os filhos, Tonico, Edu, Antunes, Zico e Nando
Família Coimbra completa: os pais, José Antunes e dona Matilde, e os filhos, Tonico, Edu, Antunes, Zico e Nando

   

Esta simplória família que residia no bairro de Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, sofreria, assim como tantas outras, os efeitos do golpe militar de 31 de março de 1964. Duas semanas depois desta fatídica data, em 14 de abril, o presidente interino Ranieri Mazzilli baixou o decreto nº 53.886, revogando o decreto assinado por João Goulart, que instituíra o PNA. Em 13 de maio, data prevista para a inauguração do programa, o Ministério da Educação, através da portaria 237 revogou todas as decisões anteriores relacionadas a este projeto, e divulgou pela imprensa que o material utilizado na campanha de alfabetização tinha caráter subversivo. Pouco mais de um mês, no dia 16 de junho, o próprio Paulo Freire foi acusado de ser “um dos responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”, o que culminaria em sua ida ao exílio, em setembro daquele ano.

 

Desligados do PNA, que na verdade, deixara de existir, os coordenadores e professores passaram a ser considerados como subversivos e a ser acompanhados de perto pelo regime militar. No caso de Zezé, ela voltou a ser professora primária. Quanto a Nando, passou a se concentrar, novamente, no futebol. Ainda como juvenil do Fluminense, em 1966, recebeu o convite para atuar no Santos da cidade capixaba de Vitória. Após algumas partidas como titular, com a chegada de um novo técnico na equipe, um oficial do exército, acabou afastado do time. O jeito foi voltar ao Rio de Janeiro, onde, já em 1967, passou a atuar juntamente com os irmãos Antunes e Edu, no América. O fato de haver três irmãos na equipe pareceu não ser do agrado do técnico Evaristo de Macedo que acabou autorizando o seu empréstimo ao Madureira. O começo no tricolor suburbano foi promissor, até que o presidente do clube, Carlinho Maracanã, o afastou sem que fossem dadas maiores explicações. Sabedor da perseguição política que se aventava, Nando que tinha apenas 21 anos, acreditou ser necessário “mudar de ares”, para seguir a sua carreira. Em 1968, foi contratado pelo Ceará, onde teve boas atuações. Embora não conseguisse o título estadual, seu futebol chamou a atenção da equipe portuguesa do Belenenses. Diante a promessa de receber o dobro do seu salário atual na equipe cearense, Nando partiu para Lisboa. Chegando lá, descobriu que havia sido enganado e que o clube estaria disposto a lhe pagar menos da metade do combinado. A pressão para que aceitasse aquela condição foi enorme. Cabe lembrar que Portugal vivia a ditadura de Salazar, que desde 1932 era o chefe do estado, e que o presidente do país, o Almirante Américo Thomas, era torcedor fanático do Belenenses, clube que presidira em 1944.

Dias depois, Nando recebeu no hotel onde estava hospedado, a visita de duas pessoas que se identificaram como membros da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE, organismo autônomo da Polícia Judiciária do governo local. Após ser interrogado e informado sobre a necessidade de entregar os seus documentos, os ilustres visitantes o alertaram que tinham conhecimento sobre sua atuação no PNA em 1964. No dia seguinte, recebeu mais uma ameaça, desta vez do diretor da equipe portuguesa. Caso ele não aceitasse assinar o contrato, por ser filho de português poderia ser alistado pelo exército do país, e ser mandado para as frentes militares que combatiam em Angola e outras colônias africanas.

Graças à ajuda da esposa do empresário que o levara a Lisboa, Nando conseguiu retornar ao Brasil. Desta vez, no entanto, o susto tinha sido grande, o que fez com que deixasse o futebol meio de lado. O silêncio também foi outra estratégia utilizada por ele, uma vez que era notória a preocupação que estes fatos atrapalhassem as carreiras do irmão Edu, que fora artilheiro do torneio Roberto Gomes Pedrosa de 1969, o campeonato nacional daquela época, com 14 gols, e que por contar disso era um provável convocado para a Copa do Mundo de 1970, e do irmão caçula, Zico, que, ainda nas categorias de base do Flamengo, encantava a todos, com seu ótimo futebol.

A não convocação de Edu para a Copa do México foi recebida com grande tristeza por toda família, mas nada comparável com a prisão da prima, Cecília, e de seu marido, José Novaes em agosto daquele ano. Pouco depois, ao saber que a filha tinha sido presa, sua tia Maria passou mal. Nando não se furtou a ir ao encontro da tia, juntamente com outro primo, médico, ao seu apartamento no bairro do Méier. Todos, com exceção da tia, acabaram sendo presos por agentes da Delegacia de Ordem Política e Social, DOPS, que munidos com armas pesadas levaram os ao Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de inteligência e repressão subordinado ao Exército brasileiro, que teve forte atuação durante os anos de vigência da ditadura militar. Encapuzados para interrogatório e diante várias ameaças, dentre elas as de que um general tinha dado ordem de prender todos aqueles que tinham participado do PNA, Nando e seus primos viveram momentos terríveis na sede do órgão militar localizado na rua Barão de Mesquita. A ida dos irmãos Antunes e Edu, jogadores conhecido naquele tempo, ao local foi de suma importância para que fossem liberados, após alguns dias, ainda que estivessem fichados como subversivos e traumatizados por tudo que se passou.

Após sua libertação, o retorno ao futebol ficou ainda mais difícil, por conta de estar fichado. Em 1971, foi convidado a atuar na equipe portuguesa do Gil Vicente, mas não poderia sair do país. Por sorte, seu pai acabou tendo a oportunidade de falar com o então presidente do extinto CND, Conselho Nacional de Desportos, o general Sizeno Sarmento, sobre sua situação. Sensibilizado, graças ao militar, sua ficha voltou a estar limpa, o que o permitiu atuar, por alguns meses, no Gil Vicente. Infelizmente, lesões sucessivas, acabam por antecipar o fim da sua carreira ainda com pouco mais de 26 anos. Naquele mesmo ano o caçula Zico despontara como titular da seleção olímpica, ao marcar gol da vitória por 1 a 0 frente a Argentina no torneio pré-olímpico, vencido pelo selecionado brasileiro. Há indícios, que o técnico Antônio Ferreira, o Antoninho, recebeu ordens para cortar Zico da delegação de disputaria os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, por conta dos fatos que envolveram Nando. Após duas derrotas, uma delas para o Irã, e um empate, a seleção brasileira foi eliminada ainda na primeira fase. Quanto a Zico, voltaria a ser convocado em 1976, marcando gol na vitória por 2 a 1 frente à seleção uruguaia em partida realizada em 25 de fevereiro no Maracanã. Esta partida seria apenas um pequeno aperitivo oferecido por um dos maiores jogadores brasileiros de todos os tempos e o maior do mais popular clube brasileiro, o Flamengo. Em dezembro de 2010, a Comissão de Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça, reconheceu que Nando foi um perseguido político da ditadura brasileira, e se tornou o primeiro jogador de futebol a ser anistiado no país.

Fonte: Futebol Interior, 23/10/2017

Disponível: https://www.futebolinterior.com.br/opiniao/Redacao/2017-10/nando-irmao-de-zico-primeiro-jogador-de-futebol-anistiado-no-brasil

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