MPF/SP denuncia dois ex-delegados do DOPS por sequestro de militante do PCB na ditadura
Feliciano Eugênio Neto é considerado pela CNV um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão militar
Feliciano Eugênio Neto é considerado pela Comissão Nacional da Verdade um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão promovida pelo Estado Brasileiro na ditadura (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP) denunciou dois ex-delegados do Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP) pelo sequestro do metalúrgico Feliciano Eugenio Neto, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A prisão da vítima, “para averiguação”, sem flagrante ou comunicação à Justiça, ocorreu em 2 de outubro de 1975, e só foi formalizada (registrada em documento) pelos delegados no dia 31 de outubro daquele ano.
Mesmo sem um mandado de prisão preventiva, ele foi recolhido ao antigo presídio do Hipódromo, na Mooca, em 22 de dezembro de 1975. A Justiça Militar decretou sua prisão em 15 de janeiro de 1976, três meses e meio após o sequestro. Segundo depoimentos dos filhos da vítima e de seu advogado, no período em que foi mantido preso ilegalmente pelas autoridades da época, Neto teria sido torturado no DOI-Codi e no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) e teve um olho de vidro, que deveria receber cuidados médicos constantes,danificado.
Neto é considerado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) um dos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão promovida pelo Estado Brasileiro na ditadura. Ele morreu no Hospital das Clínicas, em 29 de setembro de 1976, aos 56 anos, dias após ser internado de urgência. Ele continuava preso, sob a custódia do Estado. Na ficha hospitalar de Neto, remetida ao MPF pelo HC, consta que ele residia na rua do Hipódromo, 600, endereço do presídio.
Denúncia - Um dos documentos trazidos à tona pelo MPF na denúncia é o depoimento do advogado de Neto, Mário de Passos Simas, autor do livro Gritos de Justiça, de 1986, em que relatou suas experiências na defesa de presos políticos e o caso do metalúrgico. No livro, ele conta que foi procurado por uma das filhas da vítima no dia 16 de outubro, 14 dias após a prisão.
Os filhos contaram ao advogado que os agentes do DOI-Codi ficaram de guarda na casa de Neto, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, após a prisão da vítima, até que eles chegassem. Os dois filhos mais velhos foram então presos e levados ao centro de tortura, onde viram as más condições em que estava o pai.
Após quatro dias de petições e sem resposta da Justiça Militar, Simas conta no livro e confirmou em depoimento que foi procurado por um oficial de Justiça e informado que poderia encontrar o preso na 2ª Seção do Exército, em São Paulo.
Narra no livro o advogado: “Escoltado por dois soldados, armados de metralhadoras, entrou no recinto um homem baixo, magro, moreno, aparentando 60 anos, rosto encovado e enrugado; puxava uma das pernas e lacrimejava de uma vista. (…) Queríamos saber, sim, se ele havia sido torturado e em que circunstâncias tinha sido preso. Absorto diante da colocação que fizéramos, ele se pôs a chorar. Demos por finda a entrevista”.
Em depoimento ao MPF, Simas confirmou o relato do livro. Ele acredita, inclusive, que sua reunião com o preso no Exército foi gravada. Somente alguns dias após essa visita, o delegado Alcides Singillo documentou a prisão de Neto, quando ele foi encaminhado ao Deops, em 31 de outubro. Detalhe, na noite de 25 para 26 de outubro, o metalúrgico foi interrogado no DOI-Codi, pela equipe de Singillo.
Apesar da materialização documental da prisão, nem Singillo, nem Seta, autor do indiciamento da vítima, e de outros documentos listados pelo MPF na denúncia, comunicaram a prisão à Justiça Militar, que julgava os presos inimigos do regime. Mesmo pelas leis ditatoriais toda prisão deveria ser comunicada ao juiz-auditor, e a incomunicabilidade (prevista na lei da época) era de 10 dias. A comunicação ao juiz-auditor pelas autoridades policiais só aconteceu em 4 de dezembro de 1975, três meses após a prisão, quando foi pedida a prisão preventiva de Neto.
Morte - Em julho de 1976, Neto foi sentenciado a dois anos de prisão pelo seu “crime”, distribuir o jornal A Voz Operária, do PCB, no interior do Estado de São Paulo. Simas acredita que, em virtude da primariedade do réu, ele seria solto em outubro. Contudo, dois meses depois, em 23 de setembro, ele deu entrada às pressas no Hospital das Clínicas. Morreu 6 dias depois, na mesa de cirurgia. A causa mortis era “indeterminada”, segundo o atestado de óbito assinado pela médica Maria Alice Correia.
Responsável pelo caso, a procuradora da República Ana Letícia Absy tentou apurar a real causa da morte, o que poderia implicar em acusações formais de tortura e homicídio, mas a médica não foi identificada pelo Cremesp. Além disso, como a morte foi no hospital, não houve necropsia e não há fotos do cadáver, documentos e registros que poderiam permitir um exame de corpo de delito indireto.
Para o MPF, Singillo e Seta atuaram previamente ajustados junto com outros agentes do Estado não identificados completamente para sequestrar e manter preso Feliciano Neto “sem ordem legal ou devida comunicação a autoridade judiciária, pelo menos de 2 a 31 de outubro de 1975, mantendo-o sem comunicação com a família até dezembro do mesmo ano, nesta cidade e subseção judiciária, e sem decreto de prisão preventiva até 15 de janeiro de 1976”.
Omissão e pleno conhecimento - Singilo e Setta, afirma a denúncia do MPF, são responsáveis pelo sequestro ao se omitirem no dever de comunicar uma prisão de que tinham conhecimento e que ocorreu também na delegacia onde trabalhavam. Para a procuradora, “os denunciados tinham pleno conhecimento do sequestro em curso e, deliberadamente, deixaram de informá-lo à autoridade competente e tomar as demais providências cabíveis, evidenciando a participação de ambos na ocultação da vítima, por meio das declarações das testemunhas que tentavam contato com o preso e não conseguiam”, o que foi testemunhado tanto pelo advogado, como pelos filhos, que só viram o pai após sua transferência para o presídio.
O crime de sequestro não prescreveu, conforme o MPF explica detalhadamente na cota da denúncia, pois tratados internacionais assinados pelo país e a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil no caso Araguaia determinam que são crimes contra a humanidade aqueles cometidos pelo Estado contra seus cidadãos de forma sistemática e generalizada.
O MPF requer que a denúncia seja recebida e Singillo (já denunciado pelo MPF/SP em outras quatro oportunidades) e Seta sejam condenados pelo crime de sequestro, com os agravantes de que o crime foi cometido com abuso de poder e de autoridade e violação de dever inerente ao cargo, consistente na manutenção da vítima presa em prédio público federal. Se condenados, o MPF requer a cassação de suas aposentadorias e outros proventos que eventualmente recebam e a destituição de suas medalhas e condecorações. A pena base do crime de sequestro na modalidade denunciada pelo MPF, é de 2 a 5 anos de prisão.
A denúncia foi distribuída à 5ª Vara Criminal Federal de São Paulo, sob o número 0013526-03.2017.403.6181
Consulte a tramitação na Justiça Federal.
Leia a íntegra da cota da denúncia
*Foto de Feliciano Eugenio Neto, reproduzida do site da Comissão Nacional da Verdade
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Fonte: MPF/SP, 06/10/2017
Disponível: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-sp-denuncia-dois-ex-delegados-do-dops-por-sequestro-de-militante-do-pcb-na-ditadura
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