Para historiadora, intervenção militar no Brasil “não pode mais ser descartada”
Os comentários recentes da cúpula militar do Brasil sobre a situação política levantaram dúvidas sobre até que ponto o país está livre de uma ação das Forças Armadas para tomar o poder. No alto do cargo de secretário de economia e finanças do Comando do Exército, o general Antonio Hamilton Mourão discursou sobre “derrubar esse troço todo” e “impor” o que considera uma solução à crise política, caso o Judiciário não “retire da vida pública esses elementos envolvidos em ilícios”.
Mais surpreendente ainda foi a reação do seu superior no comando do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que descartou punir Mourão pelas declarações e ainda disse que as Forças Armadas dispõem de “um mandato” para intervir “na iminência de um caos” no Brasil. O Planalto, visado pelas declarações, silenciou, por mais que a Constituição de 1988 proíba os militares de intervir na política.
Ao mesmo tempo, nas redes sociais, se multiplicam as mensagens de apoio a Mourão e links para notícias falsas, com propaganda velada sobre o tema. A sequência de acontecimentos interpela a historiadora Maud Chirio, pesquisadora francesa sobre a história contemporânea do Brasil e especialista no regime militar. “Tal indisciplina ter passado sem consequências nos leva a sair de um modelo de democracia civil estável”, assinala.
A professora da Universidade de Paris Est Marne-la-Valée acha que uma intervenção militar é, por enquanto, pouco provável – mas vê com preocupação os últimos desdobramentos envolvendo a cúpula do Exército.
Há dois anos, poucos acreditavam que o impeachment da presidente Dilma Rousseff seria possível, mas aconteceu. Há um ano, a hipótese de uma intervenção militar no Brasil parecia um absurdo: hoje, nem tanto. Como você vê a evolução dessa alternativa?
Essa possibilidade era impensável há poucos meses, mas agora não pode ser descartada. Quando o alto comando militar conversa sobre a possibilidade de uma intervenção na política, é um fato muito importante. Existe uma regra absoluta nas Forças Armadas que é a não intervenção, de um jeito ou de outro, na política. E isso foi abertamente falado, sem consequências ou punições. Esse fato é extremamente grave, independentemente da probabilidade de ocorrer. Por enquanto, acho que não é o mais provável. Mas tal indisciplina ter passado sem consequências nos leva a sair de um modelo de democracia civil estável.
Em uma democracia consolidada, as declarações do general Mourão jamais passariam em branco?
Jamais. Jamais. Muitos fatores explicam o general Mourão não ter sido punido, assim como os outros generais que demonstraram solidariedade ao que ele disse. Existe a fraqueza do governo atual, que tem dificuldades em impor um poder civil aos militares e precisa manter o apoio dos altos comandos das Forças Armadas. Tem a posição do general Villas Bôas, que está no final da carreira e, por ter pouco futuro na ativa, também está perdendo poder. Mas o fato de a punição não ter ocorrido mostra que foi aberta uma nova brecha na democracia brasileira.
Um amigo e admirador de Mourão, o pré-candidato Jair Bolsonaro, que atua na política e dentro das regras da política, homenageia abertamente figurões da ditadura, sem complexos. Ele conta com estimados 20% de apoio da população brasileira. Essa “intervenção” militar pode ocorrer pelas urnas?
Se o Bolsonaro for eleito, não seria intervenção; seria a ascensão democrática de uma figura da extrema-direita. Há um crescimento acelerado da extrema-direita no Brasil, em diversos setores: populares, das classes médias e nas Forças Armadas, que são e sempre foram uma instituição conservadora, em especial o oficialato. Uma parcela do oficialato está indo mais para a extrema-direita do que se via alguns anos atrás. Isso leva a ser possível homenagear torturadores a evocar a abertamente a saudade da ditadura militar.
Essa saudade nunca desapareceu totalmente, mas é novidade ela ser evocada pública e oficialmente. São comportamentos que há três anos eram impensáveis. Em 2012 e 2013, quando os generais se recusavam a condenar os crimes cometidos durante a ditadura, era um escândalo. Não estamos mais neste universo e esse fenômeno é muito preocupante. Quando, ao mesmo tempo, as Forças Armadas se tornam mais e mais conservadoras e intervencionistas, cria-se um perigo para a democracia. É um perigo diferente de o Bolsonaro ganhar as eleições.
As eleições presidenciais devem ocorrer em 2018, mas diante do contexto atual, muito pode acontecer em um ano no Brasil. Que cenários poderiam facilitar uma intervenção militar antes das eleições? A queda do presidente Michel Temer?
Historiadores analisam o passado e não fico muito confortável para analisar o presente, e muito menos o futuro. Não falando mais como historiadora, me chamou a atenção que o Mourão falou sobre a necessidade de intervir se o poder Judiciário não assumir o seu papel. Eu considero essa frase uma ameaça: se o poder Judiciário não condenar as pessoas certas, será necessário intervir. O que ele quis dizer foi: se o Lula não for condenado e puder se candidatar, será inaceitável.
Acho que há pouquíssimas chances de Lula ser absolvido, mas se isso ocorrer, para parte dos setores conservadores, em especial militares, é inimaginável ele poder se candidatar e ganhar as eleições.
Em 1964, a possibilidade de uma intervenção militar era pouco imaginável alguns meses antes, e a instalação de um regime militar era totalmente inimaginável. Nem os militares pensavam que isso aconteceria. Em 1964, ninguém pensava que a intervenção duraria mais do que três meses.
A gente não consegue prever o que os militares vão fazer quando eles chegam ao poder. E eles podem usar vários tipos de pretextos: muita desordem nas ruas e violência urbana, uma explosão de conflitos entre criminosos, outros escândalos envolvendo a equipe que está no poder.
A Constituição não bastaria para impedir uma intervenção?
Eles já estão lendo a Constituição de 1988 para justificar: para eles, a proteção da lei e da ordem já é uma justificativa suficiente para intervir em certas circunstâncias, analisadas por eles mesmos.
Em um recente artigo publicado no jornal francês Libération, você afirma que a ideia de que a democracia brasileira é consolidada é uma ilusão. O que a leva a chegar a essa conclusão?
Tem uma narrativa sobre a chegada da República no Brasil segundo a qual, entre recuos e conquistas, chegou-se à consolidação definitiva do sistema democrático na Nova República. A primeira República foi um avanço, porém oligárquica, depois a Constituição de 1934 abriu o caminho, com novos direitos obtidos pela Revolução de 1930, e, assim, cada passo gerou mais conquistas.
Eu acho que a Nova República nasceu sob o argumento de que a democracia liberal venceu, mas isso foi um mito fundador e definitivo, com o famoso “ditadura: nunca mais”. Chegamos ao sufrágio universal, a uma democracia estável e dizemos “nunca mais” a golpes militares e autoritarismos. Só que isso é um mito.
Pensar que a Constituição de 1988 é perfeita, que cria um sistema sólido, que as instituições brasileiras são profundamente democráticas, tudo isso é fruto de uma narrativa que nos impede de ver a realidade. O Judiciário é uma instituição extremamente conservadora. A classe política é de homens com mais de 50 ou 60 anos, que se formou durante o regime militar e que fazem parte de famílias que estão no poder há quase um século. Isso é a democracia brasileira. Sendo assim, ela não pode estar totalmente estável, definitiva e perfeita. Ela está progredindo, mas não está ganha.
Nada está ganho: nem a laicidade do Estado, nem o caráter civil da democracia, nem a Constituição e o respeito dela, nem a confiança nas instituições judiciárias.
Essa extrema-direita brasileira sempre existiu, mas apenas eclodiu agora?
Ela sempre existiu, não é o nascimento de um anti-comunismo paranoico ou uma vontade de moralizar a política. Quando você estuda os anos 1960, como eu, você tem uma impressão muito forte de viajar no tempo. Não estamos diante de uma coisa nova: houve uma constância de certas forças e culturas políticas que nunca morreram e que agora estão ganhando espaço político, midiático e eleitoral, se aproveitando de um contexto global. E estão ganhando espaço de uma maneira muito acelerada, em todos os campos: educação, religião no espaço público, diversidade, gênero, em muitos temas da sociedade e do sistema político.
É um momento que ocorre não só no Brasil. Estamos num momento do conservadorismo, como outros que já aconteceram e passaram. Temos de estar atentos à violência e à rapidez desse processo.
Temos a impressão de que não há muitas barreiras à ascensão dessa extrema-direita no Brasil, a não ser nas redes sociais. É perigoso?
Eu acho que as redes sociais podem ser um fator de forte mobilização popular. Mas há momentos de fluxo e refluxo da mobilização. Os progressistas do Brasil se desiludiram muito nos últimos anos. Eles manifestaram em 2013, com greves e mobilizações de diversos setores, que não deram em nada positivo.
A impressão é de que tudo que você fez não teve o menor impacto e a política continuou monopolizada pelos poderosos de sempre, os deputados e os juízes, e eles é que fizeram a história neste momento. Isso não leva as pessoas a voltarem para rua. Na Europa também é assim: em anos de muitas manifestações, os anos seguintes são de pouca mobilização. Esse é o movimento da história.
Quem ou o que pode proteger o Brasil de uma intervenção militar? Os brasileiros?
Eu acho que os milicos aceitariam a continuação de um governo muito conservador, apesar de muito corrupto, e assim eles não precisariam intervir. Acho que nenhum setor da esquerda vai voltar ao poder – talvez nem ocorram eleições -, que quem “precisar” ser condenado, será, e então a intervenção não será necessária. Por enquanto, acho que o cenário é esse.
Quanto a proteger o Brasil, ninguém protege um país de 200 milhões de habitantes. Nem a ONU, nem ninguém. A comunidade internacional se importa um pouco quando há violações graves dos direitos humanos pelo governo, o que já é o caso do Brasil há 40 anos. Se houver um regime autoritário que passe a prender, torturar e matar centenas de opositores, é provável que a comunidade se preocupe. Mas antes disso, não.
É importante notar que os setores dominantes da direita brasileira estão muito divididos, muito mais do que em 1964. Muita gente não quer intervenção militar. Alguns militares têm a mesma visão econômica do que a direita liberal, mas outros não: são mais nacionalistas e nacionalistas-autoritários. Não saberíamos quem iria ganhar.
Eles poderiam, por exemplo, querer prender todo mundo para ficar com todo o poder e mandar todo o PSDB para a cadeia. Neste caso, é muito melhor organizar uma eleição indireta em 2018 para ficar no poder e manter os milicos longe. Acho que essa é a posição majoritária na burguesia conservadora. Mas se os generais resolverem colocar os tanques na rua, é outra história: e, às vezes, os golpes militares são realizados contra a burguesia.
Fonte: RFI, 28/09/2017
Disponível: http://br.rfi.fr/brasil/20170928-para-historiadora-intervencao-militar-no-brasil-nao-pode-mais-ser-descartada
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