Projeto revela novos detalhes da ditadura, como prisão e morte de Paulo Stuart Wright
Acervo Ditadura reúne material do coletivo Memória, Verdade e Justiça sob cuidados do Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas da Faed/Udesc
PAULO CLÓVIS SCHMITZ, FLORIANÓPOLIS
08/07/2017 13H55 - ATUALIZADO EM 07/07/2017 ÀS 21H41
Ela estava em estado tão deplorável na cela que um médico, discretamente, deixou uma cartela com 24 comprimidos para que se matasse e encurtasse aquela agonia. Apanhara muito, entrara e saíra do coma, mas queria viver – era muito jovem e ousada para se entregar, mesmo abaixo de tortura. Esta passagem, registrada em entrevista a “O Estado” em 1979, quando da volta a Santa Catarina, pode explicar a obstinação de Derlei Catarina de Luca, professora por formação, militante de causas humanísticas por vocação, para descobrir o que for possível sobre os crimes da ditadura no Brasil. O depoimento ao jornal faz parte de um amplo material doado no final de junho pelo coletivo Memória, Verdade e Justiça ao IDCH (Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas), vinculado à Faed/Udesc, em Florianópolis.
O Acervo da Ditadura – nome geral do projeto – está disponível para consulta, porém ao primeiro contato sobrevém a vontade de espalhar o seu conteúdo (de resto, já tornado público) como forma de denúncia e de conscientização de quem não viveu os anos de chumbo e defende a volta dos militares ao poder. Não há regimes totalitários imunes à condenação histórica por seus atos, mas no caso brasileiro existem detalhes e peculiaridades que justificam a teimosia dos detratores em ir a fundo, tentar descobrir onde estão os torturadores remanescentes e desenterrar os ossos de quem desapareceu sem deixaram vestígios.
“No caso do ex-deputado Paulo Stuart Wright, descobrimos quem prendeu, quem matou e quem deu fim ao corpo”, diz Derlei de Luca, satisfeita com os resultados de seu trabalho e o de muitas outras pessoas movidas pelo mesmo objetivo. Pelas evidências do caso, ela constatou que o responsável pela morte de Wright foi o major Ubirajara Brandt Rodrigues, do Centro de Informações do Exército. Ele dirigiu toda a operação que começou com a prisão do deputado, num trem do subúrbio de São Paulo, em 1º de setembro de 1973, e terminou na “desova” num rio de Itapevi, a 30 quilômetros da capital paulista. Derlei fechou o quebra-cabeças em 2015 e só agora revela a informação a um órgão de imprensa.
Segundo o jornalista Marcelo Godoy, no livro “A casa da vovó” – que traz o depoimento de vários torturadores – quem cuidava dos interrogatórios e, posteriormente, dos assassinatos na Boate Querosene, centro clandestino de repressão em Itapevi, eram o capitão Enio Pimentel da Silva, o capitão Freddie Perdigão Pereira, o sargento Roberto Artoni, o sargento João de Sá Cavalcanti Netto, o capitão André Leite Pereira Filho.
"Poderia ter uma vida simples, como professora, mas não era esse o meu destino. Acho que faria tudo de novo."
Derlei de Luca
A farsa desvendada
Há 40 anos desencavando informações, consultando arquivos e indo atrás de jornalistas e de familiares de presos, torturados e desaparecidos, Derlei soube que muitas vítimas da ditadura foram mortas na Boate Querosene, perto de um rio onde os corpos eram atirados, quase sempre desmembrados. No livro “A casa da vovó”, de Marcelo Godoy, o major Ubirajara Brandt admite ter desaparecido com o corpo de três opositores do regime – e Paulo Wright era um deles. Também havia uma usina de açúcar em Cambahyba, no município de Campos, no Rio de Janeiro, onde os mortos eram incinerados. Ali, em 1973, morreu outro catarinense, João Batista Rita, 25 anos, nascido em Braço do Norte. “Nesses casos, não há chance sequer de encontrar as cinzas”, lamenta a professora aposentada, comparando a prática às da Alemanha nazista.
A solução para o caso do primeiro prefeito de Balneário Camboriú, Higino João Pio, assassinado na Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Florianópolis, em 3 de março de 1969, foi outra vitória do coletivo. Após anos tendo que engolir a versão mentirosa de suicídio, a família foi informada de que Pio foi morto na cela por motivos torpes, ligados a quizilas políticas em sua região e no Estado. O sonho de Derlei, do coletivo e de todos os que desejam ver a justiça prevalecer é que o Ministério Público Federal peça a prisão dos executores e torturadores do período ditatorial que ainda estão vivos.
De professora primária a militante
O destino da jovem Derlei de Luca destoou da maioria, mas se aproximou, em termos de escolhas, de muitas trajetórias que foram tolhidas pela ditadura. Nascida em Içara, onde havia uma grande mina de carvão, ela estudou em Criciúma, cidade de forte tradição trabalhista. A família era politizada e, como professora primária, Derlei conheceu muitos alunos cujos pais foram presos após o golpe de 1964. Quando estudante, chegou a ir a um comício de João Goulart, o Jango, presidente que viria a ser deposto quando tentava implementar reformas de base. Como o mundo era pequeno ali, ela veio para Florianópolis em 1966 e cursou Pedagogia. Encontrou os diretórios acadêmicos fechados na universidade, e a primeira luta veio daí, a ponto de fazer parte do DCE, já reaberto, no ano seguinte.
Uma denúncia de corrupção na reitoria da UFSC, a repressão aos movimentos estudantis, os “congressinhos” que prepararam na surdina o grande encontro de Ibiúna, em São Paulo – tudo isso foi importante, mas ficou para trás quando ela passou a trabalhar numa fábrica de tecidos em Curitiba para aprender a lidar com a classe operária. Paulo Stuart Wright fez o mesmo quando trocou a chance de uma carreira acadêmica pela função de ajudante de torneio mecânico. Era a oportunidade de estar perto dos trabalhadores, uma obsessão para os militantes e intelectuais de esquerda naqueles anos.
Do Paraná para São Paulo foi um pulo. Só que ali, quase por acaso, foi presa pela Operação Bandeirantes porque carregava algumas publicações com conteúdo contra o regime. Confundida com outra jovem procurada pelos militares, Derlei sofreu nas mãos dos torturadores, teve uma vértebra e alguns dentes quebrados. Ficou presa durante mais de dois meses e chegou a entrar em coma, mas quando viram o erro – apesar das revistas e da passagem por Ibiúna – não tiveram coragem de devolvê-la à família, pela precária situação de saúde em que se encontrava. Foi aí que surgiu o médico com os comprimidos.
Recuperada, Derlei voltou para Santa Catarina, andou pela Bahia e Ceará, até se refugiar em Londrina (PR), cidade que considerou mais tranquila para ter o filho José Paulo. Quando o menino fez três meses, pediu a um hospital local para entregá-lo à sua mãe, em Içara, e tratou de sair do Brasil. Dois anos e meio depois, já em Cuba, depois de andar pela Argentina e pelo Chile (chegou lá no momento da deposição do presidente Salvador Allende), passou a criar o filho por conta própria. Soube da morte de Paulo Stuart Wright – espécie de guru de sua geração que a ajudou a fugir do país – quando estava asilada na embaixada do Panamá em Santiago. “Devo minha vida a ele”, declara.
Falando de tudo o que passou, Derlei diz não se arrepender de nada. “Poderia ter uma vida simples, como professora, mas não era esse o meu destino”, afirma. “Acho que faria tudo de novo”.
Onde eram mortos os ‘chineses’
Os relatos de Derlei de Luca sobre a prisão em São Paulo, entre 1969 e 1970, as torturas que lhe foram impostas e a luta de quatro décadas para localizar os corpos dos mortos e desaparecidos só são menos candentes que sua luta por identificar os responsáveis pela repressão, sobretudo nos anos do governo Médici (1969-1974). Ela foi militante da AP (Ação Popular), o mais forte movimento de oposição à ditadura, que teve em Paulo Stuart Wright um grande expoente. Na cadeia, foi submetida ao “pau de arara”, palmatória e choques dados pelo investigador da polícia civil Walter Lang, que ela redescobriu há pouco tempo pesquisando no Google.
O desaparecimento de Paulo Wright, a quem conheceu quando tinha 14 anos, foi um tema a que se dedicou desde o final da década de 70. A primeira vez que a repressão reconheceu a morte do ex-deputado catarinense foi no livro “A casa da vovó”, de Marcelo Godoy, onde há menções aos codinomes Agente Alemão (Walter Lang) e Agente Neusa (Beatriz Martins) como participantes da operação de ocultação do corpo de Wright. O centro de repressão clandestino chamado de Boate Querosene, na Grande São Paulo, eram para onde iam os presos que tinham estado na China – caso de Wright, listado entre os “chineses” porque havia visitado o país oriental em razão de sua militância.
O agente Alemão fazia parte da equipe Curia, do DOI-Codi paulista, que seguiu e prendeu Paulo Wright no trem e foi quem, muitos anos antes, girara a máquina de choques nas torturas a Derlei na prisão. Quem controlava a Boate Querosene era o major Ubirajara Brandt Rodrigues, conhecido então como Doutor César. Ele também cooptou alguns “cachorros” (traidores) da Ação Popular na tentativa de liquidar esse movimento de luta contra o regime vigente.
Fonte: Notícias do Dia, 08/07/2017
Disponível: https://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/projeto-revela-novos-detalhes-da-ditadura-como-prisao-e-morte-de-paulo-stuart-wright
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