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Filme que mostrou o lado cruel e injusto de Brasília completa 50 anos

  • Publicado: Terça, 16 de Mai de 2017, 12h33
  • Última atualização em Terça, 16 de Mai de 2017, 12h35

Há 50 anos, o olhar inquieto do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), diretor do clássico “Macunaíma”, registraria o que só quem estava em Brasília tinha consciência: a cidade era um “sonho” para os que moravam sob as asas do avião; e um pesadelo para os que estavam em sua volta. Nas superquadras, o paraíso e a novidade arquitetônica. Na periferia, o inferno e a privação da moradia.

 

Joaquim Pedro de Andrade: Brasília nua

 

 

Com 22 minutos, o curta-metragem “Brasília – Contradições de Uma Cidade Nova” era um torpedo que despedaçava o sentimento cívico daqueles que insistiam em atribuir ao projeto modernista de Juscelino Kubitschek, urbanístico de Lucio Costa e arquitetônico de Oscar Niemeyer a áurea idealista de sua concepção.

A ideia era mostrar que, por melhor que fosse a intenção dos arquitetos e urbanistas, não se poderia praticar urbanismo de mão-cheia num contexto de injustiça social como o brasileiro."

Joaquim Pedro de Andrade

Apesar de encomendado pela multinacional italiana Olivetti, o documentário não era chapa-branca. Ao contrário, tinha a liberdade crítica que marcou o Cinema Novo. De pronto, era oposição às produções panfletárias e ufanistas que sustentavam Brasília como um símbolo de uma nova era, sustentado pelo mítico sonho de Dom Bosco.

Joaquim cercou-se de artistas combativos. No roteiro, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, um dos 230 professores que pediram demissão da UnB em 1965, em represália aos ataques da ditadura, e o arquiteto Luís Saia. Ferreira Gullar fez a narração e Affonso Beato conduziu a fotografia.

A revelação Maria Bethânia cantava “Viramundo”, canção-protesto, na trilha.

Dividida em duas partes, a obra deixa Brasília nua e mostra que a cidade não conseguiu escapar da reprodução nacional de um Brasil reprodutor de injustiça social, traço, aliás, que se agudizava fortemente com a nação tomada pelos militares.

Sem medo de enfrentar o sistema repressor, Joaquim Pedro de Andrade, que já havia sido preso, em 1966, por protestar contra a ditadura, narra o quão a Universidade de Brasília (UnB) e toda a concepção social e humanista da nova capital foram dilapidadas com o golpe de 1964.

É lógico que posteriormente o filme foi destroçado pela ditadura militar. Em 1967, Joaquim não apresentou a obra à censura, antes de levá-la à sessão não anunciada no III Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 1967. O curta ganhou uma discreta menção honrosa e foi violentamente engavetado.

O filme desagradou dos militares aos criadores de Brasília. Oscar Niemeyer não gostou do que viu e se negou a assinar uma carta de apoio a Joaquim para que o curta pudesse voltar a ser exibido. O arquiteto atribuía a falência do projeto Brasília humanista aos militares e acreditava que a cidade voltaria a cumprir a sua missão assim que o país voltasse à democracia. Anos depois, Niemeyer e Joaquim Pedro se reencontraram. E Niemeyer pediu desculpas. Admitiu que ele estava errado.

Em 1969, Joaquim foi preso, sem aparente motivo, e encaminhado ao DOPS (centro institucionalizado da tortura). Dessa vez, foi salvo porque integrava o Festival Internacional de Cinema do Rio e, o cineasta Claude Lelouch ameaçou denunciar o Brasil ao mundo, vetando a exibição da obra inscrita sem a presença do cineasta.O curta também teve o desprezo dos empreendedores da Olivetti que assistiram à versão inacabada no Brasil e na Itália e sentiram cheiro de problema. Estranhamente, os negativos desapareceram. Sobrou uma única cópia que sabiamente foi depositada no Museu de Arte Moderna (MAM), o que possibilitou o filme voltar ao grande público nos anos 2000, como extra de uma edição comemorativa de “Macunaíma”. No YouTube, está na íntegra.

Roteiro de uma obra-prima:

Fotografia deslumbrante de Affonso Beato.

O filme começa com um ar cívico, pontuado inicialmente pela música clássica de Erik Satie.

Ferreira Gullar imprime uma narração distanciada, mostrando as novidades do Plano Urbanístico, com crianças brincando felizes nas superquadras, “o reino da vida familiar confortável”.

Aos poucos, começa a criticar o desconforto entre o monumental e a vida cotidiana, ainda sem diversão. Para os mais abastados, a cidade era um dormitório e nada mais.

Vale observar a W3 e seus engarrafamentos e a criação de cemitérios bem longe do centro para evitar inconvenientes cortejos.

As críticas à ditadura não são panfletárias, mas sutis e contundentes. Quando surge o Palácio da Alvorada, ele é narrado como “uma casa de um homem comum, um brasileiro eventualmente escolhido para dirigir o país”

Niemeyer sofre a primeira forte crítica. “Apesar do desafio de ser novo e original, o Palácio da Alvorada reproduz o velho modelo da casa grande, com varandas em volta e capela lateral.

Ao som de uma passarada que canta livre e feliz, são apresentados os moradores. JK entre o povo e os generais cercados de militares.

O curta mostra a insatisfação dos funcionários mais graduados, que apesar do conforto do amplo apartamento, acha Brasília distante e inconveniente

Cita a fuga dos intelectuais e artista e mostra uma rara entrevista de Athos Bulcão.

O tom da narração vai ganhando mais calor na voz de Ferreira Gullar, ao falar que, em vez de integração entre ricos e pobres, Brasília trouxe a discriminação.

Numa coragem, que deve ter impulsionado a prisão em 1969, Joaquim filma um grupo de universitários aglutinados na UnB, questionando a perda de sentido da instituição após a invasão. A câmera fecha na frase “Menos incompetência”

Aos 10 minutos, o filme dá uma virada política e estética. A câmera vai para a mão de Affonso Beato e desce na Rodoviária do Plano Piloto, absolutamente caótica. Maria Bethânia começa a interpretar “Viramundo”, de Gilberto Gil

E a Brasília dos sonhos se desfaz pela paisagem deserta das cidades-satélites, com esquema urbanístico ultrapassado e feiras desordenadas.

As entrevistas ficam intensas e críticas. Trabalhadores se sentem traído e desprezados. Alguns revoltados insinuam a falta de liberdade de expressão. As violência são explicitadas. Muitos foram arrancados do Plano e despejado nas cidades de mala e cuia. Uma mulher conta que, ao relento, crianças morreram de frios enquanto os barracos eram levantados,

A câmera segue para um ônibus que vem do Nordeste e as expectativas dos migrantes são exaltadas.

Ao fim, sensação de estar diante de uma obra-prima

Fonte: Metrópoles, 16/05/2017

Disponível: http://www.metropoles.com/colunas-blogs/tipo-assim/filme-que-mostrou-o-lado-cruel-e-injusto-de-brasilia-completa-50-anos

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