Filme que mostrou o lado cruel e injusto de Brasília completa 50 anos
Há 50 anos, o olhar inquieto do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), diretor do clássico “Macunaíma”, registraria o que só quem estava em Brasília tinha consciência: a cidade era um “sonho” para os que moravam sob as asas do avião; e um pesadelo para os que estavam em sua volta. Nas superquadras, o paraíso e a novidade arquitetônica. Na periferia, o inferno e a privação da moradia.
Com 22 minutos, o curta-metragem “Brasília – Contradições de Uma Cidade Nova” era um torpedo que despedaçava o sentimento cívico daqueles que insistiam em atribuir ao projeto modernista de Juscelino Kubitschek, urbanístico de Lucio Costa e arquitetônico de Oscar Niemeyer a áurea idealista de sua concepção.
A ideia era mostrar que, por melhor que fosse a intenção dos arquitetos e urbanistas, não se poderia praticar urbanismo de mão-cheia num contexto de injustiça social como o brasileiro."
Apesar de encomendado pela multinacional italiana Olivetti, o documentário não era chapa-branca. Ao contrário, tinha a liberdade crítica que marcou o Cinema Novo. De pronto, era oposição às produções panfletárias e ufanistas que sustentavam Brasília como um símbolo de uma nova era, sustentado pelo mítico sonho de Dom Bosco.
Joaquim cercou-se de artistas combativos. No roteiro, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, um dos 230 professores que pediram demissão da UnB em 1965, em represália aos ataques da ditadura, e o arquiteto Luís Saia. Ferreira Gullar fez a narração e Affonso Beato conduziu a fotografia.
A revelação Maria Bethânia cantava “Viramundo”, canção-protesto, na trilha.
Dividida em duas partes, a obra deixa Brasília nua e mostra que a cidade não conseguiu escapar da reprodução nacional de um Brasil reprodutor de injustiça social, traço, aliás, que se agudizava fortemente com a nação tomada pelos militares.
Sem medo de enfrentar o sistema repressor, Joaquim Pedro de Andrade, que já havia sido preso, em 1966, por protestar contra a ditadura, narra o quão a Universidade de Brasília (UnB) e toda a concepção social e humanista da nova capital foram dilapidadas com o golpe de 1964.
É lógico que posteriormente o filme foi destroçado pela ditadura militar. Em 1967, Joaquim não apresentou a obra à censura, antes de levá-la à sessão não anunciada no III Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 1967. O curta ganhou uma discreta menção honrosa e foi violentamente engavetado.
O filme desagradou dos militares aos criadores de Brasília. Oscar Niemeyer não gostou do que viu e se negou a assinar uma carta de apoio a Joaquim para que o curta pudesse voltar a ser exibido. O arquiteto atribuía a falência do projeto Brasília humanista aos militares e acreditava que a cidade voltaria a cumprir a sua missão assim que o país voltasse à democracia. Anos depois, Niemeyer e Joaquim Pedro se reencontraram. E Niemeyer pediu desculpas. Admitiu que ele estava errado.
Em 1969, Joaquim foi preso, sem aparente motivo, e encaminhado ao DOPS (centro institucionalizado da tortura). Dessa vez, foi salvo porque integrava o Festival Internacional de Cinema do Rio e, o cineasta Claude Lelouch ameaçou denunciar o Brasil ao mundo, vetando a exibição da obra inscrita sem a presença do cineasta.O curta também teve o desprezo dos empreendedores da Olivetti que assistiram à versão inacabada no Brasil e na Itália e sentiram cheiro de problema. Estranhamente, os negativos desapareceram. Sobrou uma única cópia que sabiamente foi depositada no Museu de Arte Moderna (MAM), o que possibilitou o filme voltar ao grande público nos anos 2000, como extra de uma edição comemorativa de “Macunaíma”. No YouTube, está na íntegra.
Roteiro de uma obra-prima:
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