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Para não repetir o passado

  • Publicado: Sexta, 24 de Março de 2017, 11h45
  • Última atualização em Sexta, 24 de Março de 2017, 11h45

Vilma Homero

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, nos idos dos anos 1980, o argentino José Maria Gómez se deparou com um período bastante efervescente no País. Pouco tempo havia se passado da promulgação da Lei de Anistia, da volta dos exilados, da emergência dos novos partidos de oposição, da entrada em cena de novos atores sociais. E, ali, diante de seus olhos, uma parcela expressiva de brasileiros se unia em pleno movimento pelas Diretas Já, cujas passeatas, segundo os jornais da época, colocavam para mais de um milhão de pessoas – a que se somavam intelectuais, políticos e artistas – nas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo. “As ditaduras eram um denominador comum aos países do Cone Sul, então, nada mais natural do que me debruçar sobre o tema dos direitos humanos e da violência política”, reflete o pesquisador. A preocupação de Gómez tem razão de sobra: sem discutir acontecimentos traumáticos e seu contexto histórico, sempre se corre o risco de ver sua repetição. Ele se debruçou sobre o tema em sua pesquisa “Políticas públicas de memória para o estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não repetição”, que vem sendo desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde Gomez – doutor em ciência política pela Universidade de Louvain, na Bélgica – é professor.

É exatamente para não se passar o risco de ver repetidos períodos truculentos como o que se sucedeu ao golpe militar de 1964 que Gómez procura colocar o assunto em discussão. “O que começou no governo Geisel como um movimento social que reivindicava anistia para os presos políticos, só terminou na gestão do último general-presidente, João Baptista Figueiredo, depois de uma difícil negociação entre uma oposição moderada e representantes do governo militar”, explica. O resultado foi a aprovação da Lei de Anistia pelo Congresso que, embora tenha beneficiado à maioria dos presos políticos condenados pelos tribunais militares de exceção, respondia a uma questão inegociável para as Forças  Armadas: garantir a impunidade dos crimes perpetrados por seus agentes e responsáveis. E eles foram vários: detenções arbitrárias, tortura sistemática, execuções sumárias, desaparecimento forçado... Cobria-se, assim, tudo o que acontecera com um manto de silêncio e esquecimento. “Junto à interpretação dominante de que a lei de anistia foi ‘negociada, recíproca e legítima’, erigiu-se um dispositivo jurídico, político e ideológico, crucial para o processo de transição elaborado ‘pelo alto, pelas elites’. Em nome de uma reconciliação e pacificação nacional, esse dispositivo persistiria ao longo de toda a normalização institucional democrática, aberta ao final da década de 1980”, analisa Gomez.

Em outras palavras, na agenda da transição política brasileira, não se incluiria a punição para os crimes cometidos, nem a reparação às vítimas, e tampoucose restauraria a verdade sobre o acontecido. A produção de verdade só viria de grupos da sociedade civil, dispostos a não deixar esquecer esses eventos, com a publicação do livro Brasil: Nunca Mais, em 1985, sob a proteção da figura proeminente de Dom Paulo Evaristo Arns e da Arquidiocese de São Paulo.

“Essa foi a principal diferença entre as transições de Brasil, Argentina e Chile. No caso argentino, por exemplo, implantou-se uma comissão oficial de verdade sobre as pessoas desaparecidas (Conadep), que resultou, em 1984, no relatório Nunca Mais. Foi também aberto um processo penal que, pela primeira vez na história latino-americana, julgou e condenou, em 1985, membros das juntas militares de governo”, lembra. No Chile, ainda com Pinochet como comandante em chefe do Exército e sob a vigência da lei de anistia decretada em 1978 como forma de assegurar a futura impunidade pelos crimes de lesa-humanidade cometidos, criou-se, em 1990, uma comissão nacional de verdade sobre mortos e desaparecidos, a Comissão Rettig, cujo modelo teve grande impacto na região e também na África do Sul.

No Brasil, ao contrário, a tensa e demorada transição política – que culminou, em 1988, com a promulgação de uma nova Constituição Federal e, em 1989, com as primeiras eleições presidenciais democráticas – aconteceu sem a chamada justiça de transição. A escolha foi virar a página do passado, sem nenhum tipo de acerto de contas”, avalia Gómez. Somente em meados da década de 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso, houve os primeiros passos, ainda bastante tímidos, em matéria de reparação às vítimas dos crimes do Estado. Em 1995, foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a que se seguiu, em 2001, a Comissão de Anistia sobre perseguidos políticos.

A ditadura militar – que, como destaca Gómez, nunca foi só militar, dada sua articulação íntima de poder com grupos empresariais e midiáticos, e sua base social originária de classe média – era, por definição, uma forma violenta de dominação. De uma violência que se manifestou desde o primeiro dia do golpe, visando militares legalistas, sindicalistas, políticos de esquerda e estudantes, e que alcançou seu ápice entre 1968 e 1974, em tempos de alta contestação política, do Ato Institucional nº 5, ou AI-5 como ficou conhecido, e de máxima eficácia do denso e capilar sistema de informação e repressão contra os opositores de esquerda. Tudo isso só começou a diminuir progressivamente na abertura política e no final do regime, embora os atentados, sequestros e ameaças da chamada “linha dura” tenham se estendido até começo dos anos 1980.

“Tal violência não se mede, nem se esgota, nas centenas de mortos e desaparecidos, nos milhares de torturados, presos políticos, trabalhadores demitidos e militares perseguidos por motivos políticos. A repressão sobre camponeses, indígenas, integrantes de movimento negro, minorias sexuais e a remoção forçada de favelas deixaram um número de vítimas nunca contabilizado”, prossegue Gómez. Por outro lado, a violência coercitiva materializada na rede de aparatos de repressão – Serviço Nacional de Informações (SNI), Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), Centro de Informações da Marinha (Cenimar), Polícia Civil e Militar, Polícia Federal e Justiça Militar – era indissociável de uma férrea censura à imprensa e às atividades culturais, além da autocensura por ela induzida.

“A tudo isso se somava uma intensa propaganda do regime, centrada nos logros do ‘milagre econômico’ e do ‘Brasil potência’, além de altas doses de patriotismo, moralismo conservador e anticomunismo primário”, afirma o pesquisador, que acrescenta: “Mesmo que a violência percorra toda a história brasileira como um fio sangrento, durante a experiência ditatorial, ela atingiu patamares sem precedentes. Além de um gigantesco aparato de vigilância e controle social, a ditadura imprimiu à tortura um caráter sistêmico e tecnicamente aperfeiçoado, legado que continua presente e banalizado nas atuais práticas policiais, sobretudo quando os alvos visados são jovens negros, pobres, de baixa escolaridade, moradores de favelas das grandes cidades”, afirma.

“A narrativa de reconciliação pelo esquecimento, que se impôs durante décadas como interpretação e sentido dominante do passado, somado a um escasso ou nulo debate público sobre o tema, produziu uma frágil, fragmentada e ambivalente memória social e política da ditadura”, explica Gómez. Nos últimos dez anos, entretanto, de acordo com o pesquisador, essa narrativa vem sofrendo um trabalho crescente de desconstrução, embora preserve seu núcleo duro em torno da Lei de Anistia e da natureza da transição para a democracia. Também o contexto internacional era propício à adoção de mecanismos de justiça de transição. “Basta lembrar o adensamento do regime interamericano de direitos humanos e o ‘efeito de contágio’ de experiências na Argentina, no Chile e no Uruguai, que na mesma época avançavam nas políticas de reparação, no julgamento e condenação dos antigos agentes repressores, de forma seletiva ou ampla, com ou sem lei de anistia”, avalia o pesquisador.

Durante o segundo mandato presidencial do governo Lula e o primeiro do governo Dilma Rousseff, tomaram-se medidas que estenderam os programas de reparação material, simbólica e terapêutica, em benefício das pessoas afetadas pela repressão. “Implementaram-se políticas públicas inéditas de acesso à informação e à verdade, entre as quais merecem destaque especial o acesso a um enorme acervo de documentos – com exceção dos arquivos secretos das Forças Armadas, que, segundo afirmam, foram destruídos –, concentrados no Arquivo Nacional e nos arquivos públicos estaduais; a criação, em 2011, da Comissão Nacional de Verdade (CNV) para investigar as graves violações aos direitos humanos pela ditadura. Foi a primeira comissão oficial da verdade no Brasil, que nasceu 26 anos depois do fim do regime e registrou inúmeros depoimentos de testemunhas, prestados nas audiências públicas de diferentes comissões, incluindo os de alguns poucos agentes repressores da época”, enumera.

Gómez destaca ainda que, embora em menor medida, foram implementadas políticas específicas de memória nos planos nacional, estadual e municipal, na forma de monumentos, homenagens, exposições, memoriais, mudanças de nome de ruas e escolas, além dos relatórios finais e recomendações das diversas comissões existentes, das Caravanas de Anistia, assim como dos projetos Marcas da Memória, Memória Revelada etc.

“O acesso à justiça, no entanto, permaneceu jurídica e politicamente bloqueado, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal de validar, em 2010, a lei de anistia de 1979”, diz o pesquisador. Ele explica que isso aconteceu apesar das iniciativas tomadas por familiares de vítimas, de iniciativas de organismos de direitos humanos, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de procuradores federais e juízes de primeira instância, reforçadas, por sua vez, pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em 2010, condenou o Estado brasileiro por não investigar nem punir os crimes de lesa-humanidade cometidos por seus agentes.

“Aliás, é essa decisão do tribunal internacional que está na base da criação da CNV”, argumenta o pesquisador. E prossegue: “Não há dúvida de que a instalação e o funcionamento da CNV foi o acontecimento político mais importante de todo esse processo, tanto por seu próprio significado, quanto pela dinâmica sociopolítica que desencadeou: a multiplicação de comissões estaduais, municipais e setoriais – como a Comissão Estadual de Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) –, e a emergência de numerosos fóruns públicos de discussão sobre a violência política do passado, com repercussão na mídia e nas redes sociais, e envolvendo a participação de jovens e coletivos diversos”, diz Gómez.

Para ele, tornou-se evidente que a memória social é um campo aberto e em constante construção, atravessado no presente por lutas e conflitos sobre os sentidos e as interpretações do passado e as expectativas inevitáveis, porém incertas, do futuro. “Sem um debate amplo na sociedade, o esquecimento hegemônico não será questionado”. Afinal, como explica Gómez, trata-se da importância que cada sociedade atribui à memória das injustiças. “E nunca é apenas uma memória; são muitas, desiguais e em conflito”, completa.

Exatamente por isso é crucial que o papel do período da ditadura seja incluído no ensino de História, faça parte da educação de crianças e adolescentes, nas escolas de ensino fundamental e médio, seja através de diretrizes e orientações curriculares definidas pelo estado, seja pelo conteúdo e abordagem dos livros didáticos, seja, enfim, pela formação dos professores e das novas possibilidades que se abrem para explorar outras fontes de informação e de conhecimento fora da escola. “O panorama, nesse sentido, é bastante desolador. O que explica, em parte, o desconhecimento, o desinteresse e a indiferença com que a maioria da população reagiu diante dos debates desenvolvidos nos últimos anos a propósito da CNV e de seus impactos diversos.”

Assim, o que no início foi pensado como uma forma de subsidiar os trabalhos da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), para Gomez, terminou se transformando num projeto singular de pesquisa, levado à frente pela equipe que ele coordena no Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, com apoio da FAPERJ, por meio do edital Apoio ao Estudo de Temas Relacionados ao Direito à Memória, à Verdade e à Justiça Relativas a Violações de Direitos Humanos. Na condição de coordenador da equipe de pesquisadores, ele está organizando a publicação de dois livros: Lugares de Memória: ditadura militar e resistências no estado do Rio de Janeiro e Violência Política e Processos de Memorialização do Passado Recente: Brasil, África do Sul, Argentina, Chile, Colômbia e Uruguai. Paralelamente, também está organizando mais duas brochuras, intituladas Sobre Políticas Públicas de Memória: recomendações e experiências no Brasil e na América Latina e Ensino de História da Ditadura Militar nas escolas.

As quatro publicações são produtos finais do meu projeto Políticas Públicas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição. Segundo Gomez, elas pretendem ser, em graus variáveis, ferramentas que contribuam e alimentem as exigências e lutas por memória, verdade e justiça que se travam no presente, entre o passado e o futuro. Ele acrescenta que, entre as propostas encaminhadas à CEV-Rio, está também a transformação de antigos centros de detenção e tortura no estado do Rio de Janeiro, em memoriais, museus ou centros de memória dos direitos humanos. “Como, aliás, já existem em outras cidades do Brasil e em numerosas cidades de países latino-americanos. Seriam lugares de memória, defesa e promoção dos direitos humanos, em que os acontecimentos do passado seriam uma lembrança ativa no presente, para que fatos semelhantes não voltem a ocorrer”, explica. Ele cita como exemplo o antigo campo de extermínio de Auschwitz, ao sul da Polônia, transformado no Museu do Holocausto, por sinal, bastante visitado.

“É importante articular passado e presente, envolvendo emoção, reflexão e imaginação. Lugares como esses são repositórios de uma memória traumática, que permitem ao visitante o aprendizado informal de um passado violento. No cenário onde o horror e o sofrimento imperaram, é possível, através de arquivos, fotos, filmes e performances artístico-culturais, conhecer e compreender o significado do que aconteceu. E associar tudo isso, fazendo paralelos e identificando conexões e diferenças com as múltiplas violações dos direitos mais elementares que ainda ocorrem no presente, inquietantes e brutais”, afirma. No Rio de Janeiro, um desses lugares seria a sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no Centro do Rio. “Atualmente, ela é objeto de uma importante campanha de coletivos e atores sociais”, lembra o pesquisador.

Fazer com que a história não se repita é, para Gomez, uma questão fundamental. “Precisamos construir uma memória reparadora, sobretudo para as novas gerações”, finaliza.

*Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano IX, Nº 34 (Março de 2016)

Fonte: Faperj

Disponível: http://www.faperj.br/?id=3362.2.5

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