Jornal de estudantes contrários à ditadura completa 50 anos
Periódico do Grêmio da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP influenciou outras publicações críticas ao regime militar
Capas dos números zero, 1 e 2 do Amanhã: críticas ao governo e ponte para o movimento operário
No dia 13 de março de 1967, em pleno regime militar, o Grêmio Estudantil da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP publicou o número zero do jornal Amanhã. A agremiação funcionava clandestinamente, ignorando decreto da ditadura que proibia a existência de movimentos estudantis, e, no editorial “Caminho para o amanhã”, deixou claro a que veio a nova publicação: “Este é um jornal que os universitários de São Paulo se propõem oferecer aos brasileiros preocupados com os problemas nacionais. Seus objetivos são claros: colocar ao alcance dos leitores dados que retratem nossa realidade social e econômica, de forma a abrir perspectivas para a tomada de posição no encaminhamento dos destinos do País”.
A iniciativa partiu de um projeto do grêmio de estabelecer uma ponte entre o movimento estudantil e o movimento operário que se formava no período de repressão, conforme relata Benjamin Abdala Junior, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e, à época, estudante de Letras, secretário geral do grêmio estudantil e jornalista profissional. “Eu estava envolvido desde o princípio nessa ideia e, como era registrado como jornalista por meus trabalhos para os Diários Associados e outras publicações, pudemos usar o meu nome para formalizar o jornal.”
Assim, sediados no antigo Teatro dos Universitários de São Paulo, na rua Haddock Lobo, os estudantes produziram sete edições do semanário, pago com dinheiro advindo do cursinho do Grêmio e das vendas do próprio jornal, que custava 30 centavos de cruzeiro novo. Sete mil exemplares de cada edição eram impressos nas instalações do jornal O Dia, vendidos em algumas bancas do centro da capital paulista — certas bancas não aceitavam vendê-lo devido ao conteúdo crítico ao regime, segundo Abdala — e também no “mão a mão” por membros do grêmio.
“O jornal pegou, não só entre os estudantes, mas entre o público em geral. O que nós colocávamos nas bancas esgotava, as pessoas tinham interesse em ler um jornal contrário à ditadura”, afirma Abdala. “Tínhamos planos para expandir a tiragem para 20 mil exemplares e começar a vendê-lo em outras capitais do País, mas aí tivemos que fechar.”
As matérias críticas, densas, porém em linguagem popular e direta, foram outro motivo do sucesso do jornal, de acordo com o professor. “Queríamos estabelecer essa comunicação com a sociedade, com o trabalhador, então precisávamos adequar a linguagem. Não se viam (e não se veem) jornais que tragam matérias complexas e densas como as que tínhamos, usando expressões populares. Acho que esse foi um dos nossos grandes acertos.”
Colaborações, tensões e perseguição
“A pauta no Amanhã era o movimento operário, sempre”, diz Abdala. “Falávamos sobre a Universidade, não com notícias factuais, mas com assuntos mais gerais, como quando criticamos o acordo entre o MEC (Ministério da Educação) e o Usaid (United States Agency for International Development), que visava a reformar a educação brasileira com base nas ideias dos Estados Unidos, que priorizam o ensino privado. Mas as matérias sobre a Universidade eram cerca de 10% ou 20% do jornal, o resto eram matérias que chegavam e que eram de interesse dos trabalhadores e da sociedade.”
Matérias informativas, críticas às decisões da ditadura, seções especializadas em cinema, arte e literatura, reportagens sobre o cotidiano (a exemplo da imersiva matéria Venha assistir o jogo com Dona Maria nas gerais do Pacaembu) e sobre política internacional, aprofundadas pela visão de intelectuais, entrevistas e reportagens especiais feitas pelo Departamento de Pesquisa do jornal (que produziu trabalhos sobre guerrilhas na América Latina, revoluções na África e a Guerra do Vietnã, este apontado por Abdala como “uma das mais bem feitas e elaboradas reportagens do Amanhã”), tudo tinha um fundo político, segundo o professor.
Esse conteúdo, além de atiçar a curiosidade e a consciência da população que o encontrava nas bancas, rendia elogios e admiração da comunidade universitária e atraía colaboradores ilustres, como os chargistas Jaguar e Fortuna e o crítico literário Otto Maria Carpeaux. “Nossas matérias eram produzidas por estudantes, pelos membros do Departamento de Pesquisa e por jornalistas e intelectuais colaboradores. O pessoal de esquerda, contrário ao regime, quando solicitado, queria participar.”
Ao mesmo tempo, porém, ele trazia problemas. “Nossa ideia era justamente aglutinar, fazer um jornal que fosse realmente expressão do coletivo. Eu era o diretor responsável pelo jornal e o Raimundo Pereira (jornalista, à época estudante de Física da FFCL, expulso do Instituto Tecnológico de Aeronáutica por sua atividade política) era o editor, e nós publicávamos matérias de várias posições e tendências divergentes da esquerda do movimento estudantil. O problema é que as matérias não eram assinadas e o único nome que aparecia no jornal era o meu, então começaram a me questionar sobre qual era a linha do jornal.”
Para estabelecer uma posição mais clara do Amanhã sem perder a pluralidade e a liberdade nas matérias e colaborações, Abdala propunha que apenas as matérias que estavam de acordo com uma determinada linha editorial não precisassem de assinatura, enquanto aquelas que divergiam ou com as quais o diretor e o editor não estivessem em total acordo deveriam ser assinadas por quem as escrevesse.
“Isso para mim era óbvio, e resolveria um outro problema também, que é o problema legal. Tinha gente querendo escrever defendendo a luta armada, mas sem assinar o texto é muito fácil! Se a polícia viesse atrás de alguém, só haveria o meu nome lá, e é claro que ela saberia que eu não escrevia tudo e iria querer que eu entregasse os autores, então eu ficaria numa posição difícil.”
O professor acredita que a ideia também faria com que as pessoas pensassem duas vezes antes de escrever sobre determinados temas: “Defender abertamente a luta armada num texto no jornal era uma completa falta de senso”. Entretanto, Raimundo Pereira não aceitava a mudança e não queria interferir na liberdade de expressão do Amanhã. Abdala afirma, contudo, que não foram as divergências internas que levaram ao fechamento do jornal. “Nunca brigamos por causa disso, são coisas que poderíamos resolver, mas a polícia já estava em cima de nós, teríamos que fechar de qualquer jeito.”
Na maior parte dos dois meses de existência do Amanhã, a produção não teve problemas com a repressão. Porém, antes do lançamento do número 6, que viria a ser a última edição do jornal, agentes do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) reviraram a redação, na rua Haddock Lobo, levando matérias e fazendo fotos. “Já estavam formalizando um processo para nos fechar, e depois disso O Dia já não permitiu mais que usássemos sua gráfica.”
Os estudantes decidiram, mesmo assim, imprimir o número 6, que continha uma síntese de uma polêmica entrevista dada pelo pensador Caio Prado Júnior à revista Revisão, outra publicação do Grêmio da FFCL. No depoimento, Prado defendeu a legitimidade da luta armada como última alternativa, caso não fosse possível derrubar a ditadura por vias democráticas. “Pela importância da entrevista e pelo fato de termos uma circulação muito maior do que a Revisão, decidimos publicar, e sabíamos que essa seria a gota d’água, pois o Deops viria a fechar a revista justamente por causa dessa entrevista, então decidimos encerrar o Amanhã.”
Além da contribuição para a conscientização e organização do movimento estudantil e a união deste com os operários e a sociedade civil na época da ditadura, Abdala ressalta outro legado do Amanhã: “Mais adiante vieram outros jornais alternativos, como o Movimento e o Opinião, dos quais o Raimundo participou, que também foram muito importantes na resistência. Mas o Amanhã foi o primeiro e, mais do que abrir as portas para os seguintes, mostrou os caminhos a seguir, os cuidados a tomar para sobreviver à repressão.”
A revista Revisão
A revista Revisão surgiu antes do Amanhã, era publicada desde 1965 pelo grêmio da FFCL e continha artigos analíticos de cunho acadêmico escritos sob uma perspectiva marxista sobre política, economia e temas sociais e culturais. Os autores eram, em geral, professores das antigas Seções de Filosofia, Economia, Ciências Sociais, Letras, História e Geografia da FFCL da USP, entre eles Eder Sader, Roberto Schwarz, Marilena Chauí, Francisco Weffort, Octavio Ianni e Rui Fausto.
Em 1967, porém, com uma mudança na linha editorial, a Revisão passou a publicar reportagens, entrevistas e materiais traduzidos de publicações de esquerda da América Latina, sobre temas de atualidades e política. Produziu reportagens de grande sucesso e foi vendida, além de nas sedes do Grêmio e dos centros estudantis de cada seção da FFCL, também em outros lugares do Brasil, como nas unidades da USP no interior de São Paulo e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esgotando os 2 mil exemplares de tiragem.
Entre as reportagens mais importantes está a que gerou a edição especial da revista, sobre o Acordo MEC-Usaid, que continha a íntegra do documento deflagrando a negociação secreta entre os governos brasileiro e norte-americano, obtido pelo futuro presidente da União Nacional dos Estudantes Luís Travassos. Além dessa, outro destaque é a edição que trouxe a entrevista com Caio Prado Júnior, que resultou no fechamento da revista, publicação que chegou a seis edições. Foram presos em consequência da entrevista, em 1970, o diretor e o editor da Revisão, Antonio de Pádua Prado Junior (Paeco) e Antonio Mendes de Almeida Junior (Pachá), respectivamente, e o professor Caio Prado Júnior.
Fonte: Jornal da USP, 09/03/2017
Disponível em: http://jornal.usp.br/cultura/jornal-de-estudantes-contrarios-a-ditadura-completa-50-anos/
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