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Os intelectuais e as ditaduras

  • Publicado: Quarta, 01 de Fevereiro de 2017, 12h36
  • Última atualização em Quarta, 01 de Fevereiro de 2017, 12h37

Por Franklin Cunha*

“Quem não conhece a história corre o risco de vê-la repetir-se”.
George Santayana

O historiador belga Henry Pirene, preso durante dois anos pelos alemães durante a primeira guerra mundial, escreveu de memória uma História Social e Econômica da Europa Medieval.
Nas condições miseráveis da prisão, aproveitava os intervalos da escritura do livro para ministrar aulas de história aos seus companheiros de desgraça, muitos deles operários e camponeses analfabetos. Ele e o holandês Johan Huizingha, com seu livro “O Outono da Idade Média”, foram os melhores e mais fidedignos historiadores daquele período obscuro de nossa história.
Certamente, ao dedicar tantos esforços e sacrifícios para nos contar os fatos corretos e verdadeiros da chamada Idade das Trevas, pensavam como o filósofo George Santayana, citado na epígrafe deste texto.
O papel importante da intelectualidade sempre foi, em todo o mundo, o de alertar as diversas classes sociais, escassamente informadas ou deformadas pelos historiadores oficiais e pelos meios de comunicação, dos perigos dos regimes não democráticos e de denunciá-los quando estes assaltam o poder.
Relembrando o que aconteceu em nossa vizinha Argentina durante a ditadura militar, entre os anos de 1973 a 1983, assinalamos os trágicos fatos que lá sucederam porque nunca é demais descrevê-los. O General Jorge Rafael Videla, falecido na prisão em 2013, instaurou, por um golpe de estado, uma das ditaduras mais atrozes da história argentina e das Américas. Em seu governo, foram desaparecidas cerca de 30.000 pessoas entre as quais se encontravam operários, estudantes, jornalistas e intelectuais opositores do governo. E muitas crianças arrancadas dos ventres de suas mães e entregues a famílias de militares e policiais. Foram cometidas, em nome do Estado, diabólicas atrocidades como os voos da morte, os assassinatos seletivos, os sequestros, torturas e assassinatos de intelectuais, jornalistas, operários e estudantes pelas forças de segurança.
De uma dessas atrocidades, por exemplo, poucos se lembram.
No dia 4 de maio de 1976, o jornalista portenho Haroldo Conti sua esposa e filhos foram sequestrados, agredidos em frente a sua casa por um esquadrão do serviço secreto do exército, e Conti, empurrado para dentro de um camburão, nunca mais foi visto.
Duas semanas depois deste sequestro, o então presidente Videla organizou um almoço na Casa Rosada para o qual foram convidadas várias personalidades de destaque na cultura argentina: Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, o famoso cardiologista René Favaloro, Horacio Ratti, presidente de la Sociedade Argentina de Escritores, Bioy Casares e o padre Leonardo Castellani que conhecia Conti de sua época no seminário e que intercedeu por ele. Por sua vez, Ratti entregou ao ditador uma lista de onze escritores desaparecidos, inclusive o jornalista Rodolfo Walsh que nesta altura já tinha sido assassinado a tiros em plena rua por um comando da polícia. Finalmente, em 1980, Videla confirmou para jornalistas espanhóis que Conti e Walsh estavam mortos, sem informar os locais e as circunstâncias. Como os restos mortais nunca foram encontrados, seus nomes continuam integrando a longa lista dos desaparecidos pela ditadura.
Videla, homem alheio à Cultura, achou politicamente conveniente se aliar com alguns representantes de prestígio das artes, das ciências e das letras. Ernesto Sabato que havia feito declarações depreciativas à democracia na ocasião do golpe do General Ongania, não deixou de elogiar Videla na revista alemã GEO (1977). Foi um entusiástico propagandista da preparação política do mundial de futebol de 1978, da guerra das Malvinas e aconselhava aos exilados políticos a não colaborar com as campanhas anti-argentinas, que depreciavam o governo do momento.
A enorme predisposição ao esquecimento da sociedade civil e a hipocrisia da maioria dos dirigentes políticos possibilitaram que, em 1984, Sabato se apresentasse como um herói cívico e fosse nomeado pele Presidente Alfonsin para a presidência da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas).
Tanto Borges quanto Sabato, ícones da literatura argentina, foram acusados de ser complacentes com os crimes da ditadura. Videla, em sua aposentadoria, publicou o livro Disposición Final, no qual revela que no almoço já citado Borges o saudou dizendo “Ave, Cesar , vencedor dos peronistas”.
Mais grave foram as declarações que os dois grandes escritores fizeram aos jornalistas depois do almoço que durou duas horas. Sabato disse que “O general me causou uma excelente impressão. Trata-se de um homem culto, modesto e inteligente. Impressionou-me a amplitude de critérios e a cultura do presidente”. E Borges, tão breve quanto incisivo, não deixou por menos: “Ele é um perfeito cavalheiro “.
O encontro de Videla com Borges e Sabato está documentado com fotos numa edição do suplemento Ñ do jornal Clarín. De qualquer forma, vários fatos posteriores demonstraram a proximidade amistosa que ambos escritores mantiveram com a ditadura militar. Nunca foram perseguidos, e até pelo contrário, foram mostrados como exemplo da cultura argentina. Sabato, em 1978, até justificou o regime ao dizer: “A imensa maioria dos argentinos rogava intensamente que as Forças Armadas tomassem o poder”. E inclusive afirmou que a situação do país estava melhorando.
Quanto a Borges, além de nunca ter denunciado as torturas e desaparecimentos, em 1976 foi ao Chile, onde recebeu o diploma de Doutor Honoris Causa da Universidade e depois foi recepcionado por Pinochet. Segundo o filósofo Juan Pablo Feinmann, o encontro de ambos não se limitou a um simples ato protocolar. Na ocasião, Borges discursou e disse “Agradeço ao Chile haver mostrado à Argentina como se luta contra o comunismo, porque elegeu a branca espada antes do que a furtiva dinamite”.( In Filosofia política del poder mediático – Ed. Planeta 2013)
Com o passar dos anos, Borges e Sabato foram se afastando e até começaram a criticar a ditadura. Borges apoiou o movimento das Mães da Praça de Maio e em 1980 publicou no Clarín uma “ Solicitação pelos desaparecidos” e se manifestou contra a aventura das Malvinas. Sabato, convidado pelo presidente Alfonsin, foi nomeado para a já referida “Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) e no ano seguinte entregou à imprensa documentos que provaram ter o regime militar praticado 8.960 desaparições e criado 340 centros de detenção e tortura.

*Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Fonte: Sul 21, 01/02/2017

Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/os-intelectuais-e-as-ditaduras/

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