Irmã Maurina: a história da freira presa sem provas e torturada pela ditadura
O caso de Maurina, que morreu há exatos sete anos, se tornou símbolo da facilidade com que o regime militar violava direitos civis e humanos: até o fim, baseada em uma acusação tênue e sem direito a defesa, a freira foi considerada criminosa e associada à “subversão”
Além das alegações dos militares, não havia qualquer prova de que Maurina soubesse das atividades políticas clandestinas do grupo para o qual cedia uma sala no prédio do orfanato
No final de outubro de 1969, sob a acusação de acolher e acobertar a atuação de militantes da luta armada, uma freira foi presa pela ditadura em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Maurina Borges da Silveira, que na época dirigia um orfanato na cidade, costumava ceder parte do espaço no prédio para associações cristãs de jovens se reunirem – um desses grupos, porém, era disfarce para uma organização armada. Quando o aparelho extremista foi desbaratado, as suspeitas imediatamente recaíram sobre a religiosa.
Maurina sempre negou ter qualquer conhecimento das atividades reais do grupo, e o governo militar jamais apresentou provas concretas de seu envolvimento. Nada disso, porém, impediu sua prisão, tortura e exílio forçado por 14 anos. Maurina tornou-se criminosa sem provas formais e, nas décadas desde então, tornou-se um dos maiores símbolos das arbitrariedades do regime militar. Até hoje, não se sabe a dimensão exata das violências sofridas pela freira no cárcere – algumas versões dizem que, além das torturas brutais, ela teria sido vítima de estupro e engravidado, passando posteriormente por um aborto.
Célula comunista no orfanato
Quando veio à tona, o caso parecia explosivo e escandaloso: uma freira ligada à resistência armada. Segundo as notícias da época, a irmã Maurina havia sido presa por consentir com as atividades subversivas das chamadas Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Sobre ela, que era diretora do orfanato Lar Santana, em Ribeirão Preto, pesavam as acusações de ter cedido espaço no prédio a Mário Lorenzato, membro das FALN. Naquela sala, Lorenzato e seus correligionários teriam iniciado as operações de um aparelho subversivo, discutindo estratégias de ação e imprimindo material de oposição ao governo. O choque do episódio aumentava porque, além de Maurina, também havia sido presa uma “freira guerrilheira” – Áurea Moretti, integrante das FALN que, no momento da prisão, vestia um hábito, embora não tivesse relação com a Igreja.
A realidade, porém, era mais nuançada do que a imprensa sob censura tinha acesso – e do que o governo ditatorial deixava transparecer. Além das alegações dos militares, não havia qualquer prova de que Maurina soubesse das atividades políticas clandestinas de Lorenzato ou de seus colegas com anterioridade à prisão deles. Até onde a freira tinha conhecimento, a sala estava cedida, desde antes de ela assumir a direção do orfanato, para um grupo ligado ao Movimento Ecumênico de Jovens, o MEJ. “[Eu] não sabia de nada. Só sabia do MEJ, mas nada da guerrilha. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palestra sobre amor... Então, nem dá para imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interesse por palestra de uma freira sobre amor”, contou a religiosa, hoje já falecida, em uma entrevista concedida em 1998 ao jornal Folha de São Paulo.
Nossa convicção: A dignidade da pessoa humana
A ausência de provas por parte das autoridades não impediu que irmã Maurina se tornasse uma nova vítima do estado de exceção: primeiro, teve sua entrada no orfanato proibida, acusada de destruir documentos que a incriminariam; depois, foi conduzida a uma delegacia de Ribeirão Preto, onde iniciaria sua longa jornada de prisão e sevícias cuja dimensão é até hoje desconhecida. O caso de Maurina se tornou simbólico da facilidade com que o regime violava direitos civis e humanos: até o fim, baseada em uma acusação tênue e sem direito a defesa, a freira foi considerada criminosa e associada à “subversão”.
Mesmo sua liberdade não viria por ser julgada formalmente inocente: ao contrário, em meio às torturas, foi obrigada a assinar uma confissão em que “revelava” ter um amante e ser comunista. Em uma nova humilhação, ela só recuperaria a liberdade em uma troca de prisioneiros típica daqueles tempos: foi libertada em 1970 ainda como “guerrilheira comunista”, como parte do acordo pela soltura do cônsul japonês Nobuo Okuchi, que havia sido sequestrado por outro grupo de extrema-esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Jamais inocentada pelo regime, irmã Maurina foi forçada a se exilar no México. “No avião, os homens da polícia viajaram o tempo todo armados. No México, queriam que descêssemos algemados, mas o cônsul brasileiro impediu. Saímos do avião sem algemas. E os policiais brasileiros queriam descer no México, mas as autoridades não deixaram”, relatou, na entrevista de duas décadas atrás. Nos anos seguintes, ela teria seus pedidos de regresso ao Brasil negados pelo governo – só voltaria 14 anos mais tarde, em meio à reabertura democrática.
Boatos e incertezas
Quando recuperou a liberdade, Maurina passou a conviver com uma nova rotina traumática: os boatos constantes sobre o que efetivamente havia ocorrido na prisão. Em Combates nas Trevas, livro publicado no fim dos anos 80, o historiador e militante comunista Jacob Gorender se baseou em depoimentos de membros da FALN que também haviam sido presos para afirmar que a freira havia sido vítima de estupro na prisão.
A versão não era novidade àquela altura: desde a soltura da freira já se comentava a respeito e, com o tempo, outros boatos também começaram a surgir. Os mais elaborados diziam que Maurina teria engravidado em função das violações sofridas – algumas versões chegavam a afirmar que o pai seria o próprio delegado Sérgio Paranhos Fleury, recordado como um dos torturadores mais violentos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo. Os que defendiam essa variante da história também contavam que, já no México, a freira teria realizado um aborto.
Tanto a irmã Maurina quanto outros representantes da Igreja passaram as décadas seguintes negando a existência de uma relação sexual forçada. No entanto, muitas versões coincidem em que algum tipo de violência íntima efetivamente ocorreu. Um dos depoimentos nesse sentido foi o do frei Manoel Borges da Silveira, à Comissão da Verdade da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Ribeirão Preto, em 2014: “ela confidenciou a uma cunhada que os torturadores ficaram nus e rasgaram a sua blusa”, afirmou Silveira. Ainda de acordo com o Frei, Maurina – já falecida no momento do depoimento – relatou ter sido torturada com choques elétricos nos seios, e que um delegado (acredita-se que Fleury) “passava a mão nas pernas dela e dizia que estava há muito tempo longe da mulher dele”. A conjunção carnal em si, no entanto, não teria ocorrido.
Embora tenha permanecido reservada até o final da vida sobre o que de fato ocorreu na prisão, sempre negando publicamente o estupro e a gravidez, há pelo menos um registro de que a freira teria confirmado parcialmente o fato: em uma conversa com a jornalista Denise Assis, autora do livro Imaculada, inspirado na história da religiosa. Em depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo, em 2014, Assis indicou que a Igreja teria buscado minimizar os acontecimentos e silenciar a versão real, que diz ter ouvido de Maurina. Segundo ela, esta seria a real razão das constantes negativas da freira quando questionada sobre o episódio.
Em seu relato, Denise Assis afirmou que foi apenas com muito custo que conseguiu ouvir Maurina descrever os fatos de maneira diferente do habitual. Quando conseguiu fazer com que a freira se abrisse, a jornalista diz ter feito a pergunta sobre o estupro e a gravidez. “Ela fez uma pausa e disse: ‘isso aconteceu, mas eu pedi muito a Deus, na hora, que não tivesse consequências’”, relatou Assis à Comissão, recordando o diálogo que manteve por telefone com a freira nos anos 90. “Eu falei: então a senhora confirma o estupro? Ela disse ‘sim, mas não a gravidez’”.
Irmã Maurina faleceu em 2011, aos 84 anos de idade. Sofria de Alzheimer e nunca chegou a confirmar publicamente a versão defendida por Denise Assis.
Fonte: Mauricio Brum, especial para a Gazeta do Povo,
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